PRESENTE E
FUTURO – 9 – Direitos Sociais de Volta – Transportes
O poeta Antônio Machado afirmou que o caminho se constrói
caminhando[1]. Neste texto, entre outras
reflexões, trata-se de mostrar primeiro a importância do caminho (transporte)
e, depois, a de se buscar entender por que é difícil construí-lo. Mas, a
prioridade é para os caminhos do cotidiano, necessários inclusive à
sobrevivência, sobre o transporte como um direito social, como tem
ocorrido com os demais direitos já brevemente examinados.
Vem sendo publicada neste blog uma série de artigos,
especialmente dedicados aos 11 "direitos sociais" mencionados no
artigo 6º da Constituição Federal; os dois artigos iniciais abordaram a
conjuntura política e de atuação do Estado brasileiro, nos anos de 2022-23, e
mecanismos de participação de inúmeros segmentos da sociedade em Conselhos, e
órgãos assemelhados. Órgãos destinados à formulação, acompanhamento da execução
e avaliação de políticas públicas, já experimentados no país. Este artigo,
relativo ao TRANSPORTE, é dedicado ao nono direito abordado nesta série.
São os seguintes os 11 direitos que estão sendo abordados, na
seguinte ordem, diferente daquela em que estão especificados na Constituição: 1
– Alimentação; 2 – Habitação; 3 – Assistência aos Desamparados; 4 – Trabalho; 5
– Saúde; 6 – Educação; 7 - Proteção à Maternidade e à Infância; 8 - Previdência
Social; 9 – Transporte; 10 – Segurança; e 11 – Lazer. Desse modo, artigos sobre
a Segurança e o Lazer completarão a série.
Uma sintética reflexão sobre a relação entre o transporte e
alguns dos demais direitos indica caminhos a percorrer na formulação,
implementação de políticas públicas de transporte. Vejamos.
a) Alimentação. Pode-se pensar logo na milenar relação entre
o campo e a cidade e o papel das estradas que permitam levar a produção de
alimentos para as feiras nos aglomerados urbanos – transformados a cada ano em
mais complexas metrópoles – e a aquisição de produtos objeto da atividade de
outros produtores por aqueles que vão à cidade oferecer os seus à venda. Ou
seja, o direito social ao transporte surgiu e se ampliou com a divisão social
do trabalho e com a indispensável organização do espaço;
b) Habitação. Desde que os primeiros grupos sociais se
estabeleceram, abandonando seu caráter nômade, a habitação implica uma rede de
transporte que dê suporte à sociabilidade. Pensemos na trajetória, desde as
caravanas de camelos dos desertos africanos e elefantes indianos às atuais malhas
de metrôs e trens de alta velocidade. Pensemos também, com maior proximidade, na
demanda de rede de transporte coletivo e malha de ciclovias em nossas regiões
metropolitanas;
c) Trabalho. O próprio direito social ao trabalho explicita a
cotidiana importância de um sistema rápido e confortável de transporte. Neste
caso, não se pode deixar de pensar no desafio de substituir os veículos
geradores de gases do efeito estufa por ciclovias que permitam o uso da própria
energia do "caminhante". Vale a pena ver exemplo de esforços nesse
sentido[2].
O autor dos artigos desta série buscou ordená-los segundo o
critério da urgência no atendimento das necessidades, nesta primeira metade da
década de vinte do século XXI, embora este autor reconheça a dificuldade de
fazer o ordenamento dos direitos para abordagem deles pela interdependência que
apresentam.
O direito social ao transporte, conforme mencionado nos
artigos anteriores desta série, relativos aos demais dez direitos sociais[3], foi resultado da proposta
de uma emenda à Constituição (PEC, nº 90, de 2011), apresentada pela Deputada
Luiza Erundina, do PSOL-SP. Em 15 de setembro de 2015, a proposta tornou-se a
Emenda Constitucional nº 90 da Constituição da República.
É comum se encontrar a referência ao direito ao “transporte
público”, mas a Emenda não contém esse adjetivo. Assim, por exemplo, até por
conta dos benefícios ao meio ambiente, especialmente o de não emissão de gás
CO2, além da quantidade de trabalhadores que utilizam esse meio de transporte
para usufruto dos outros direitos sociais (trabalho, saúde, educação etc.), pode-se
afirmar ser plenamente justificável a desoneração, parcial ou total, de
impostos incidentes sobre as bicicletas. Ou seja, seria um caso de uso desse
instrumento de política pública, a tributação, para o alcance de mais de um
objetivo.
Interessante abordagem do papel da bicicleta no transporte
público (o condicionado pela infraestrutura urbana, por exemplo) pode ser lida
no artigo de Janio Laurentino de Jesus Santos e Luiz Eduardo Pereira Ferreira
dos Santos: "Planejamento e Mobilidade Urbana no Brasil: o Uso da Bicicleta
como uma Nova Maneira de Pensar e Construir a Cidade"[4]. Nesse artigo, os autores
citam Maria Ermínia Maricato, em contribuição importante para esta reflexão
sobre o direito social ao transporte:
Segundo Maricato (2011), a mobilidade
urbana é mais precária nos bairros onde se encontram os moradores de baixa
renda, que estão localizados nas “periferias”, os quais mostram que a
desigualdade socioespacial se reflete nas condições de deslocamento da
população. O alto custo da passagem, a baixa rotatividade do transporte público
nas áreas periféricas e a falta de infraestrutura e política para os modais não
motorizados, como a bicicleta, fazem com que essa população tenha negado o
direito de ter uma mobilidade de qualidade na cidade". [5]
Um fato determinante para o reconhecimento do direito ao
transporte é a necessidade de a sociedade se aglomerar, pelos mais diversos
motivos. Citemos alguns:
a)
semanalmente,
ou em periodicidade menor, os agricultores familiares precisam reunir sua
produção e ir à uma “feirinha de produtos saudáveis” para obter recursos e,
assim, poder, como produtores de alimentos, adquirir os demais tipos de bens
que outros produzem. Essa aglomeração de vendedores aumenta com a busca dos
compradores pelos produtos dos camponeses, que precisam possuir ou alugar
veículos para oferecer sua produção;
b)
diariamente,
milhões de estudantes precisam se aglomerar em salas de aula, pátios de
recreio, bibliotecas, campos de esporte etc. para construir sua cidadania com a
aquisição de novos conhecimentos, a discussão sobre estes e o desenvolvimento
de novas habilidades;
c)
diariamente,
nos cinco ou seis dias de jornada semanal de trabalho, milhões de adultos se
reúnem em grupos para produzir os mais diferentes bens e prestar os mais
diversos serviços, ao mesmo tempo em que produções como estas atraem milhões de
adquirentes aos centros comerciais[6].
Os exemplos de demanda por transporte se multiplicariam, pela
simples razão de que a sociedade se baseia na divisão social do trabalho, o que
exige trocas de bens e serviços entre pontos geográficos tanto mais
diversificados quanto mais ampla seja a organização de novos territórios. Por
outro lado, as demandas por bens e serviços são ampliadas a partir de novas
necessidades e pelas inovações destinadas a criá-las e a atendê-las.
A ampliação do atendimento às necessidades, por um lado, relaciona-se
com a redução, ainda que insignificante, das desigualdades de renda, na medida
em que possibilita o acesso, a segmentos da sociedade, a direitos básicos, como
a alimentação e a moradia; por outro lado, o conjunto de bens e serviços se
modifica com a diversificação dos itens, e os processos de sua produção se
transformam permanentemente, com repercussões amplas sobre a movimentação de
bens e pessoas, tornando o transporte de pessoas e mercadorias um direito dos
mais importantes e, por isso, inscritos na Constituição da República.
Entre as
pesquisas realizadas pelo IBGE, tomou-se a realizada junto ao conjunto dos
municípios brasileiros (MUNIC – Pesquisa de
Informações Básicas Municipais). Examinou-se aquela que levantou, relativamente
ao ano de 2021, a situação dos municípios quanto a um instrumento de gestão
urbana especialmente significativo para a política de transporte, como a de
outras políticas: o Plano Diretor Municipal. Merecem destaque os seguintes
resultados:
a) inicialmente,
registre-se que são 5.570 municípios no país, dos quais apenas 2.960 têm Plano
Diretor e 994 já o reviram; 2.602 não têm Plano Diretor, mas 553 o estão
elaborando;
b) do ponto de vista do
território nacional, os planos diretores estão distribuídos pelas regiões da seguinte
forma: Norte: 8%; Nordeste: 32%; Sudeste: 30%; Sul, 21%; e Centro-Oeste, 8%;
c) as participações dos
municípios já alcançados pela execução de Planos Diretores são: pouco mais da
metade no país como um todo (53%), mas variam de um mínimo de 40% no Nordeste a
78% no Sul.
A pesquisa do IBGE junto aos
municípios contempla também informações sobre grande quantidade de instrumentos
de gestão municipal, dentre os quais vamos destacar aqui os mais encontrados,
em 2021, como implementados nos 5.570 municípios, e mais significativos para o
tema deste artigo, o direito ao transporte.
1.
Legislação sobre área ou zona especial de interesse social. No Brasil, 1.283 municípios
contavam com legislação específica e em 1.968 deles a legislação era parte do
Plano Diretor; ou seja, 58% dispunham desses instrumentos legais;
2.
legislação de perímetro urbano. 3.727 municípios tinham legislação específica e 1.222, como
parte do Plano Diretor, representando 89% do total dos municípios;
3.
legislação sobre solo criado ou outorga onerosa do direito de construir. 46% criaram legislação; 834, legislação
específica sobre este tema e 1.704, como parte integrante do Plano Diretor;
4.
legislação sobre zoneamento ambiental ou
zoneamento ecológico-econômico. 896 municípios possuíam
legislação específica e 1.669 haviam aprovado os instrumentos em legislação
integrada ao Plano Diretor, significando uma participação apenas de 46% dos
municípios com esse tipo de instrumento.
Um estudo abrangendo, no caso do Recife, o Plano Diretor e a
questão do direito social à habitação, ao tocar na desigualdade de renda e
periferias da metrópole, ajuda a chamar a atenção para o tema deste artigo, o
direito social ao transporte:
O Brasil viu sua taxa de urbanização
aumentar de 36,1%, em 1950, para 84,4%, em 2010 (IBGE, 2012[7]), o que denota a
celeridade desse processo. Como pano de fundo desta dinâmica, havia um quadro
de crescimento econômico pautado na concentração de ganhos e renda em estratos
sociais mais altos, e nos baixos salários percebidos pela maioria da população,
oriunda da classe trabalhadora. Esta assimetria de base se reproduziria na
exclusão dos grupos sociais mais pobres do acesso às áreas urbanas de maior
valor. Restou-lhes ocupar zonas periféricas, desprovidas de infraestruturas e
serviços, multiplicando as formas de moradia precária em favelas,
assentamentos, loteamentos clandestinos etc. (ROCHA, DINIZ e JARDIM, 2022)[8].
Observe-se o aumento no grau de dificuldade de prestação de
serviços de transporte, decorrente do processo gerado pela concentração
desordenada de população nas periferias das metrópoles.
Um aspecto fundamental, no entanto, precisa ser destacado: os
direitos sociais estão relacionados com a desigualdade de renda. Ninguém, por
exemplo, vai pensar em direito ao transporte por parte de alguém que tem renda
suficiente para trocar, anualmente, o carro que usa por um “zero quilômetro”.
Algumas medidas de política pública de transporte evidenciam isto:
a)
É
importante, por exemplo, registrar o tratamento diferenciado da política
tarifária de transportes coletivos com relação aos idosos, ao estabelecer
gratuidade no transporte público municipal. É no artigo 230 da Constituição da
República, em seu parágrafo 2º, que é garantida, aos maiores de sessenta e
cinco anos, a gratuidade dos transportes coletivos urbanos;
b)
igualmente
cabe registro da definição de cotas de gratuidade no transporte intermunicipal.
A interferência do Poder Público Municipal no racionamento do
espaço público das cidades, para efeito de sua ocupação para estacionamento,
fixando-se períodos curtos de permanência, também representa exemplo de
necessárias políticas para garantia do transporte, levando-se em conta as
prioridades e a distribuição das oportunidades de obtê-lo. Destaque-se que,
nesse caso específico do transporte individual, o direito ao transporte leva os
governos a medidas para proteção de grupos específicos, com deficiências de
várias ordens ou com limitações decorrentes da idade:
a)
redução
de tributos sobre os veículos ou determinações com relação a adaptações deles;
b)
reserva
de espaços em estacionamentos, públicos ou privados, para idosos e pessoas com
deficiência;
c)
disponibilização
aos estudantes, por Prefeituras, de sistemas de “transporte escolar”, inclusive
intermunicipal, para possibilitar a frequência a cursos superiores em outras
cidades.
O direito ao transporte aponta, pode-se deduzir, para tratamento
de uma enormidade de aspectos, nem sequer indicados aqui.
O autor desta série de artigos agradece
as valiosas observações feitas por Eneida Ende, especialista em Direito
Administrativo e aos Professores João Carvalho e Maria Isabel Pedrosa à versão
preliminar a eles apresentada. Mas, é claro, os isenta por falhas remanescentes
na versão final, da responsabilidade exclusiva do autor.
Ivo V. Pedrosa - //:ivopedrosa.academia.edu – 12/05/2023.
[1] "Caminante, no hay camino, se hace camino ao andar". Ver sobre as obras do poeta: https://sentidosocial.com.br/caminhante-de-antonio-machado-o-poeta-existencialista/.
[3]
Vem sendo publicada no blog https://brasilcomdemocracia.blogspot.com.
[4]
Publicado pela Revista de Direito da Cidade: DOI: 10.12957/rdc.2022.52895.
[5] Esta citação é do livro da autora "Brasil,
cidades: alternativas para a crise urbana (Petrópolis, Vozes, 2011, 4ª ed.).
[6]
Não há dúvida de que houve enorme impacto da pandemia do Coronavírus,
deslocando para a residência a execução de tarefas por milhões.
[7]
IBGE – Censo Demográfico de 2010. 2012.
[8]
Danielle de Melo Rocha, Fabiano Rocha Diniz e Felipe Jardim. O Novo Plano
Diretor do Recife e o Direito à Moradia: Um Olhar Crítico sobre o Processo
de Revisão e Alguns dos Instrumentos Urbanísticos Propostos. Rev. Dir. Cid.,
Rio de Janeiro, Vol. 14, N.01, 2022, p. 538-580. DOI: 10.12957/rdc.2022.52706|
ISSN 2317-7721.