12/05/2023

 

PRESENTE E FUTURO – 9 – Direitos Sociais de Volta – Transportes

 

O poeta Antônio Machado afirmou que o caminho se constrói caminhando[1]. Neste texto, entre outras reflexões, trata-se de mostrar primeiro a importância do caminho (transporte) e, depois, a de se buscar entender por que é difícil construí-lo. Mas, a prioridade é para os caminhos do cotidiano, necessários inclusive à sobrevivência, sobre o transporte como um direito social, como tem ocorrido com os demais direitos já brevemente examinados.

Vem sendo publicada neste blog uma série de artigos, especialmente dedicados aos 11 "direitos sociais" mencionados no artigo 6º da Constituição Federal; os dois artigos iniciais abordaram a conjuntura política e de atuação do Estado brasileiro, nos anos de 2022-23, e mecanismos de participação de inúmeros segmentos da sociedade em Conselhos, e órgãos assemelhados. Órgãos destinados à formulação, acompanhamento da execução e avaliação de políticas públicas, já experimentados no país. Este artigo, relativo ao TRANSPORTE, é dedicado ao nono direito abordado nesta série.

São os seguintes os 11 direitos que estão sendo abordados, na seguinte ordem, diferente daquela em que estão especificados na Constituição: 1 – Alimentação; 2 – Habitação; 3 – Assistência aos Desamparados; 4 – Trabalho; 5 – Saúde; 6 – Educação; 7 - Proteção à Maternidade e à Infância; 8 - Previdência Social; 9 – Transporte; 10 – Segurança; e 11 – Lazer. Desse modo, artigos sobre a Segurança e o Lazer completarão a série.

Uma sintética reflexão sobre a relação entre o transporte e alguns dos demais direitos indica caminhos a percorrer na formulação, implementação de políticas públicas de transporte. Vejamos.

a) Alimentação. Pode-se pensar logo na milenar relação entre o campo e a cidade e o papel das estradas que permitam levar a produção de alimentos para as feiras nos aglomerados urbanos – transformados a cada ano em mais complexas metrópoles – e a aquisição de produtos objeto da atividade de outros produtores por aqueles que vão à cidade oferecer os seus à venda. Ou seja, o direito social ao transporte surgiu e se ampliou com a divisão social do trabalho e com a indispensável organização do espaço;

b) Habitação. Desde que os primeiros grupos sociais se estabeleceram, abandonando seu caráter nômade, a habitação implica uma rede de transporte que dê suporte à sociabilidade. Pensemos na trajetória, desde as caravanas de camelos dos desertos africanos e elefantes indianos às atuais malhas de metrôs e trens de alta velocidade. Pensemos também, com maior proximidade, na demanda de rede de transporte coletivo e malha de ciclovias em nossas regiões metropolitanas;

c) Trabalho. O próprio direito social ao trabalho explicita a cotidiana importância de um sistema rápido e confortável de transporte. Neste caso, não se pode deixar de pensar no desafio de substituir os veículos geradores de gases do efeito estufa por ciclovias que permitam o uso da própria energia do "caminhante". Vale a pena ver exemplo de esforços nesse sentido[2].

O autor dos artigos desta série buscou ordená-los segundo o critério da urgência no atendimento das necessidades, nesta primeira metade da década de vinte do século XXI, embora este autor reconheça a dificuldade de fazer o ordenamento dos direitos para abordagem deles pela interdependência que apresentam.

O direito social ao transporte, conforme mencionado nos artigos anteriores desta série, relativos aos demais dez direitos sociais[3], foi resultado da proposta de uma emenda à Constituição (PEC, nº 90, de 2011), apresentada pela Deputada Luiza Erundina, do PSOL-SP. Em 15 de setembro de 2015, a proposta tornou-se a Emenda Constitucional nº 90 da Constituição da República.

É comum se encontrar a referência ao direito ao “transporte público”, mas a Emenda não contém esse adjetivo. Assim, por exemplo, até por conta dos benefícios ao meio ambiente, especialmente o de não emissão de gás CO2, além da quantidade de trabalhadores que utilizam esse meio de transporte para usufruto dos outros direitos sociais (trabalho, saúde, educação etc.), pode-se afirmar ser plenamente justificável a desoneração, parcial ou total, de impostos incidentes sobre as bicicletas. Ou seja, seria um caso de uso desse instrumento de política pública, a tributação, para o alcance de mais de um objetivo.

Interessante abordagem do papel da bicicleta no transporte público (o condicionado pela infraestrutura urbana, por exemplo) pode ser lida no artigo de Janio Laurentino de Jesus Santos e Luiz Eduardo Pereira Ferreira dos Santos: "Planejamento e Mobilidade Urbana no Brasil: o Uso da Bicicleta como uma Nova Maneira de Pensar e Construir a Cidade"[4]. Nesse artigo, os autores citam Maria Ermínia Maricato, em contribuição importante para esta reflexão sobre o direito social ao transporte:

Segundo Maricato (2011), a mobilidade urbana é mais precária nos bairros onde se encontram os moradores de baixa renda, que estão localizados nas “periferias”, os quais mostram que a desigualdade socioespacial se reflete nas condições de deslocamento da população. O alto custo da passagem, a baixa rotatividade do transporte público nas áreas periféricas e a falta de infraestrutura e política para os modais não motorizados, como a bicicleta, fazem com que essa população tenha negado o direito de ter uma mobilidade de qualidade na cidade". [5]

Um fato determinante para o reconhecimento do direito ao transporte é a necessidade de a sociedade se aglomerar, pelos mais diversos motivos. Citemos alguns:

a)      semanalmente, ou em periodicidade menor, os agricultores familiares precisam reunir sua produção e ir à uma “feirinha de produtos saudáveis” para obter recursos e, assim, poder, como produtores de alimentos, adquirir os demais tipos de bens que outros produzem. Essa aglomeração de vendedores aumenta com a busca dos compradores pelos produtos dos camponeses, que precisam possuir ou alugar veículos para oferecer sua produção;

b)      diariamente, milhões de estudantes precisam se aglomerar em salas de aula, pátios de recreio, bibliotecas, campos de esporte etc. para construir sua cidadania com a aquisição de novos conhecimentos, a discussão sobre estes e o desenvolvimento de novas habilidades;

c)      diariamente, nos cinco ou seis dias de jornada semanal de trabalho, milhões de adultos se reúnem em grupos para produzir os mais diferentes bens e prestar os mais diversos serviços, ao mesmo tempo em que produções como estas atraem milhões de adquirentes aos centros comerciais[6].

Os exemplos de demanda por transporte se multiplicariam, pela simples razão de que a sociedade se baseia na divisão social do trabalho, o que exige trocas de bens e serviços entre pontos geográficos tanto mais diversificados quanto mais ampla seja a organização de novos territórios. Por outro lado, as demandas por bens e serviços são ampliadas a partir de novas necessidades e pelas inovações destinadas a criá-las e a atendê-las.

A ampliação do atendimento às necessidades, por um lado, relaciona-se com a redução, ainda que insignificante, das desigualdades de renda, na medida em que possibilita o acesso, a segmentos da sociedade, a direitos básicos, como a alimentação e a moradia; por outro lado, o conjunto de bens e serviços se modifica com a diversificação dos itens, e os processos de sua produção se transformam permanentemente, com repercussões amplas sobre a movimentação de bens e pessoas, tornando o transporte de pessoas e mercadorias um direito dos mais importantes e, por isso, inscritos na Constituição da República.

Entre as pesquisas realizadas pelo IBGE, tomou-se a realizada junto ao conjunto dos municípios brasileiros (MUNIC – Pesquisa de Informações Básicas Municipais). Examinou-se aquela que levantou, relativamente ao ano de 2021, a situação dos municípios quanto a um instrumento de gestão urbana especialmente significativo para a política de transporte, como a de outras políticas: o Plano Diretor Municipal. Merecem destaque os seguintes resultados:

 

a)   inicialmente, registre-se que são 5.570 municípios no país, dos quais apenas 2.960 têm Plano Diretor e 994 já o reviram; 2.602 não têm Plano Diretor, mas 553 o estão elaborando;

b)   do ponto de vista do território nacional, os planos diretores estão distribuídos pelas regiões da seguinte forma: Norte: 8%; Nordeste: 32%; Sudeste: 30%; Sul, 21%; e Centro-Oeste, 8%;

c)    as participações dos municípios já alcançados pela execução de Planos Diretores são: pouco mais da metade no país como um todo (53%), mas variam de um mínimo de 40% no Nordeste a 78% no Sul.

 

A pesquisa do IBGE junto aos municípios contempla também informações sobre grande quantidade de instrumentos de gestão municipal, dentre os quais vamos destacar aqui os mais encontrados, em 2021, como implementados nos 5.570 municípios, e mais significativos para o tema deste artigo, o direito ao transporte.

1.      Legislação sobre área ou zona especial de interesse social. No Brasil, 1.283 municípios contavam com legislação específica e em 1.968 deles a legislação era parte do Plano Diretor; ou seja, 58% dispunham desses instrumentos legais;

2.      legislação de perímetro urbano. 3.727 municípios tinham legislação específica e 1.222, como parte do Plano Diretor, representando 89% do total dos municípios;

3.      legislação sobre solo criado ou outorga onerosa do direito de construir. 46% criaram legislação; 834, legislação específica sobre este tema e 1.704, como parte integrante do Plano Diretor;

4.      legislação sobre zoneamento ambiental ou zoneamento ecológico-econômico. 896 municípios possuíam legislação específica e 1.669 haviam aprovado os instrumentos em legislação integrada ao Plano Diretor, significando uma participação apenas de 46% dos municípios com esse tipo de instrumento.

Um estudo abrangendo, no caso do Recife, o Plano Diretor e a questão do direito social à habitação, ao tocar na desigualdade de renda e periferias da metrópole, ajuda a chamar a atenção para o tema deste artigo, o direito social ao transporte:

O Brasil viu sua taxa de urbanização aumentar de 36,1%, em 1950, para 84,4%, em 2010 (IBGE, 2012[7]), o que denota a celeridade desse processo. Como pano de fundo desta dinâmica, havia um quadro de crescimento econômico pautado na concentração de ganhos e renda em estratos sociais mais altos, e nos baixos salários percebidos pela maioria da população, oriunda da classe trabalhadora. Esta assimetria de base se reproduziria na exclusão dos grupos sociais mais pobres do acesso às áreas urbanas de maior valor. Restou-lhes ocupar zonas periféricas, desprovidas de infraestruturas e serviços, multiplicando as formas de moradia precária em favelas, assentamentos, loteamentos clandestinos etc. (ROCHA, DINIZ e JARDIM, 2022)[8].

Observe-se o aumento no grau de dificuldade de prestação de serviços de transporte, decorrente do processo gerado pela concentração desordenada de população nas periferias das metrópoles.

Um aspecto fundamental, no entanto, precisa ser destacado: os direitos sociais estão relacionados com a desigualdade de renda. Ninguém, por exemplo, vai pensar em direito ao transporte por parte de alguém que tem renda suficiente para trocar, anualmente, o carro que usa por um “zero quilômetro”. Algumas medidas de política pública de transporte evidenciam isto:

a)      É importante, por exemplo, registrar o tratamento diferenciado da política tarifária de transportes coletivos com relação aos idosos, ao estabelecer gratuidade no transporte público municipal. É no artigo 230 da Constituição da República, em seu parágrafo 2º, que é garantida, aos maiores de sessenta e cinco anos, a gratuidade dos transportes coletivos urbanos;

b)      igualmente cabe registro da definição de cotas de gratuidade no transporte intermunicipal.

A interferência do Poder Público Municipal no racionamento do espaço público das cidades, para efeito de sua ocupação para estacionamento, fixando-se períodos curtos de permanência, também representa exemplo de necessárias políticas para garantia do transporte, levando-se em conta as prioridades e a distribuição das oportunidades de obtê-lo. Destaque-se que, nesse caso específico do transporte individual, o direito ao transporte leva os governos a medidas para proteção de grupos específicos, com deficiências de várias ordens ou com limitações decorrentes da idade:

a)      redução de tributos sobre os veículos ou determinações com relação a adaptações deles;

b)      reserva de espaços em estacionamentos, públicos ou privados, para idosos e pessoas com deficiência;

c)      disponibilização aos estudantes, por Prefeituras, de sistemas de “transporte escolar”, inclusive intermunicipal, para possibilitar a frequência a cursos superiores em outras cidades.

O direito ao transporte aponta, pode-se deduzir, para tratamento de uma enormidade de aspectos, nem sequer indicados aqui.

O autor desta série de artigos agradece as valiosas observações feitas por Eneida Ende, especialista em Direito Administrativo e aos Professores João Carvalho e Maria Isabel Pedrosa à versão preliminar a eles apresentada. Mas, é claro, os isenta por falhas remanescentes na versão final, da responsabilidade exclusiva do autor.

Ivo V. Pedrosa - //:ivopedrosa.academia.edu12/05/2023.



[1] "Caminante, no hay camino, se hace camino ao andar". Ver sobre as obras do poeta: https://sentidosocial.com.br/caminhante-de-antonio-machado-o-poeta-existencialista/.

[3] Vem sendo publicada no blog https://brasilcomdemocracia.blogspot.com.

[4] Publicado pela Revista de Direito da Cidade: DOI: 10.12957/rdc.2022.52895.

[5] Esta citação é do livro da autora "Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana (Petrópolis, Vozes, 2011, 4ª ed.).

[6] Não há dúvida de que houve enorme impacto da pandemia do Coronavírus, deslocando para a residência a execução de tarefas por milhões.

[7] IBGE – Censo Demográfico de 2010. 2012.

[8] Danielle de Melo Rocha, Fabiano Rocha Diniz e Felipe Jardim. O Novo Plano Diretor do Recife e o Direito à Moradia: Um Olhar Crítico sobre o Processo de Revisão e Alguns dos Instrumentos Urbanísticos Propostos. Rev. Dir. Cid., Rio de Janeiro, Vol. 14, N.01, 2022, p. 538-580. DOI: 10.12957/rdc.2022.52706| ISSN 2317-7721.