17/07/2022

 

PRESENTE E FUTURO  3 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A ASSISTÊNCIA AOS DESAMPARADOS

 

Optou-se nesta série de artigos, onze dos quais dedicados, cada um, a um direito social explicitado no texto atual da Constituição Federal (artigo 6º)[1], por adotar uma sequência em que se inicia com os direitos relacionados com as necessidades mais fundamentais para a sobrevivência dos indivíduos, seja do ponto de vista dos bens e serviços referentes a elas (alimentação e habitação), seja do ponto de vista de carência absoluta de recursos para obtê-los, por parte dos indivíduos considerados “desamparados”.

O direito ao trabalho, a ser apreciado no próximo artigo, fundamenta-se na relação indispensável entre: por um lado, o atendimento às necessidades relacionadas com os direitos sociais, tanto os dois já abordados quanto os demais, inclusive o tratado neste artigo e, por outro lado, nas duas formas de obtenção dos bens e serviços com que possa contar o cidadão, alternativa ou conjuntamente: a remuneração pelo exercício de atividade produtiva ou o recebimento de transferências gratuitas, quer para aquisição de bens e serviços, quer estes diretamente. Essas formas de transferências devem ser disponibilizadas, seja pelo Estado, seja pelos demais indivíduos, isoladamente ou por meio de organizações, sejam elas empresas, sejam as tradicionais, não estritamente[2] lucrativas (igrejas, sindicatos, associações e cooperativas etc.) ou outras, privadas, mas sem fins lucrativos (as chamadas “organizações não governamentais”).

Assim, a partir das características do trabalho e do direito a ele, pode ser estabelecida a seguinte sequência de abordagem dos direitos sociais, objetivo desta série de artigos:

a)    os dois primeiros direitos, Alimentação e Habitação, já tratados nos artigos 3 e 4, desta série[3], e o que agora é abordado, a Assistência aos Desamparados, estão relacionados mais estreitamente com o direito individual à vida, de tal modo que a sociedade, por meio do Estado, ou não, precisa de forma inadiável, atender a essas necessidades. Essas atividades estão também associadas à “solidariedade” (palavra mais utilizadas nas situações de emergência) e à “ajuda humanitária”;

b)   o direito ao trabalho[4] gera, como contrapartida, o dever do Estado de possibilitar aos indivíduos a participação nos processos de produção, ou, dito de outra forma, “gerar emprego ou estimular sua criação” (seja por meio dos serviços públicos de responsabilidade dos aparelhos do Estado, seja, nessa sociedade capitalista em que vivemos, das empresas de todos os tipos de natureza jurídica, ou das organizações privadas não governamentais). Nos três casos, a sociedade gerará, simultaneamente, emprego e renda para os trabalhadores;

c)    os demais sete direitos sociais exigem, em maior ou menor grau, de acordo com o nível da renda média da sociedade e de sua desigual distribuição, o concurso de esforços de indivíduos e entidades privadas, mas, certamente serão mais efetivas as ações do Estado para o atendimento da exigência constitucional dos referidos direitos dos indivíduos.

A ação direta do Estado é motivo de muitas divergências entre segmentos de cidadãos, pois abrange várias categorias de atividades:

1. o exercício direto daquelas atividades produtivas com natureza estratégica para toda a sociedade (como, por exemplo, fornecimento de água potável e energias, com ênfase nas fontes sustentáveis);

2. a concessão de direito de exploração de recursos naturais, sobretudo na atual fase de risco da humanidade com as mudanças climáticas decorrentes da ação humana;

3. a regulação das atividades desenvolvidas por entidades privadas, lucrativas ou não; e

4. a expropriação de bens (terra, imóveis estoques) necessários à realização de atividades indispensáveis a ações do Estado.

No caso específico da Assistência aos Desamparados, cabe sobretudo ao Estado a transferência, para esses indivíduos, de recursos financeiros que não conseguem obter no “mercado de trabalho”, além de dotação de recursos para entidades dedicadas à assistência aos indivíduos carentes de recursos. A realização dessas transferências exige uma estrutura do Sistema Tributário Nacional com ênfase na progressividade, tendo em vista o grau de desigualdade da renda no nosso país[5]. Essa característica dos impostos tem sido de implantação especialmente difícil no Brasil.

A participação percentual da arrecadação do Imposto de Renda no total da arrecadação de todos os tributos, no Brasil e em grupos de países selecionados da OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, em relação ao PIB, no período 1965-2013, situou-se, em termos aproximados da seguinte forma, tomando-se percentuais mais característicos do conjunto da série, não necessariamente os extremos:

a) na Escandinávia e em países anglófilos: entre 45% e 50%;

b) em sete países da Europa Ocidental: entre 30% e 35%;

c) em cinco países do Sul da Europa: entre 15% e 30%;

d) em 19 países de América Latina, apenas a partir de 1990: entre 20% e 25%;

e) no Brasil: de 1965 a 1980, cerca de 10%; entre 1980 e 1995, o patamar mudou para 15%; de 2000 até 2013, a carga situou-se entre 15% e 20%[6].

Os desamparados constituem um segmento da sociedade que exige a indagação sobre as razões para sua existência. Por que as relações sociais dão origem a essa categoria de excluídos dos direitos que permitem uma vida digna?

A resposta a essa pergunta exigiria amplo esforço de reflexão econômica, sociológica, antropológica e, talvez, psicológica, para o qual não há espaço neste artigo. Mas, uma observação a partir da Economia Política, levando-se em conta a hegemonia do modo de produção capitalista no processo histórico moderno e contemporâneo, pode apontar, como fator determinante do surgimento e crescimento do número de desamparados, a dinâmica da acumulação de capital, que motiva o desenvolvimento técnico-científico, visando à redução dos custos com a mão-de-obra, e, simultaneamente, produz barreiras à sua acumulação, por excluir massa de desempregados que provocam o estreitamento do mercado de consumo dos produtos a serem vendidos. Esta contradição do Capitalismo, uma das revelações da crítica empreendida pela teoria do materialismo histórico-dialético, dá origem a abordagens, rapidamente comentadas a seguir, acerca do processo de desigualdade e exclusão, origem e acelerador da luta de classes.

Visualizamos as seguintes abordagens sobre as relações entre os cidadãos, com ou não a intermediação do Estado:

a)      a filantrópica, que promove a mobilização de pessoas e recursos para destiná-los a entidades voltadas para o atendimento das necessidades básicas dos desamparados;

b)      a religiosa, que a partir da crença de ser a humanidade, e tudo o mais no universo, criação de Deus, pai de todos, o direito à vida digna decorrerá, no caso do monoteísmo cristão, do cumprimento dos deveres ou exortações constantes dos textos bíblicos;

c)      a reformadora, que entende ser possível introduzir reformas no Capitalismo, de modo que os mecanismos de concentração de capital e renda, intrínsecos à sua dinâmica, sejam neutralizados, tornando esse modo de produção viável; a contradição dessa alternativa está na dificuldade de tornar efetiva a democracia representativa numa sociedade em que a sua enorme maioria não obtém, por meio apenas da própria atuação, o mínimo para sobreviver, o que gera uma ausência de representantes desse segmento significativo nas Casas do Congresso, das Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais;

d)      a revolucionária que, fundamentada na teoria do materialismo-histórico-dialético, entende ser indispensável a tomada do poder do Estado, em mãos dos detentores do capital (especialmente no Capitalismo Financeiro, a forma mais concentradora de riqueza, renda e poder, desse modo social de produção), tornando-o um Estado Democrático Popular.

Numa perspectiva ampla e a partir do reconhecimento do direito à vida, há motivação, em variados e diversificados segmentos da sociedade, para a ação humanitária. De um modo geral esta ação promove a mobilização de pessoas e recursos para o atendimento das necessidades básicas das pessoas com renda baixa e situações de vulnerabilidade. Mas, a vida digna pressupõe o usufruto de vários outros direitos além daqueles que minimamente a garantem. Citem-se os exemplos da cultura e do conhecimento de outros lugares e de outras pessoas. Os onze direitos estabelecidos no artigo 6º da Constituição Federal asseguram condições mínimas (alimentação, habitação, assistência aos excluídos ou desamparados), mas os outros direitos são todos essenciais para o exercício da cidadania, aspecto central da convivência democrática. Repetindo-os: Saúde, a Proteção à Maternidade e à Infância, a Educação, o Transporte – seja para o trabalho, seja para outras atividades indispensáveis, como os cuidados de saúde e o direito ao Lazer – e, por fim, a Previdência Social. Este último pode ser considerado o direito à vida após a fase “produtiva” ou de “aptidão para geração de valor, por meio da força de trabalho”.

O direito fundamental à vida[7], presente na Constituição Federal[8], foi objeto de reconhecimento em dois movimentos da contemporaneidade: a Revolução Francesa (1789) e a fundação da Organização das Nações Unidas (1945). O direito social “Assistência aos Desamparados” está claramente relacionado com esse direito à vida.

Quanto ao primeiro aspecto – o de o trabalho ser um meio de obtenção de remuneração – apresenta-se como desafio para a sociedade a garantia de oportunidades para o exercício de atividades, garantia que constitui um direito para os cidadãos, o “direito ao trabalho”. Mas, como garantir essas oportunidades senão com a possibilidade de exercício pelos aparelhos do Estado de planejamento para a criação dos postos de trabalho? Esse exercício de atividade estatal é visto por segmentos da sociedade como intervenção nas atividades, constituindo-se em cerceamento da “livre iniciativa”. Livre iniciativa para produzir desigualdades e carências?

Ivo V. Pedrosa – Recife, 11/07/2022.



[1] Repitam-se aqui, como nos artigos anteriores, para melhor acompanhamento na leitura, os direitos sociais constantes do mencionado artigo 6º da Constituição Federal: Educação, Saúde, Alimentação, Trabalho, Lazer, Moradia [habitação, nos artigos desta série], Transporte, Segurança, Previdência Social, Proteção à Maternidade e à Infância e Assistência aos Desamparados.
Esse conjunto de direitos incluem-se nos “direitos humanos” constantes da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, que assim os define: “Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, liberdade de opinião e expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre outros. Todos têm direito a estes direitos, sem discriminação. Ver: https://unric.org/pt/o-que-sao-os-direitos-humanos/

[2] Aqui, a palavra “estritamente” se justifica diante do fato de o lucro, no sentido da Economia, ser o resultado perseguido por excelência em atividades produtivas de bens e serviços; um resultado que significa, de forma simplificada, um “excedente” ou diferença entre a receita obtida com a venda da produção e todos os custos incorridos nesta. Mas, no caso da empresa (privada, pública ou de economia mista), o lucro é uma forma de excedente que é destinado, após o pagamento de imposto, aos proprietários dos meios de produção, quaisquer que sejam as naturezas jurídicas das empresas; no caso de cooperativas, por exemplo, o excedente é distribuído entre os cooperados de acordo com o estatuto. Ver, a respeito, a Lei nº 5.764, de 16/12/1971, que definiu a Política Nacional de Cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas. Ela está publicada, com anotações de leis que a modificaram, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm#:~:text=L5764&text=LEI%20N%C2%BA%205.764%2C%20DE%2016,cooperativas%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.

[4] Deve ser ressaltado que o Trabalho, um dos 11 “direitos sociais” da Constituição, que será abordado no artigo seguinte desta série, deve ser examinado juntamente com os “direitos dos trabalhadores” listados no artigo 7º da Constituição Federal, porque eles definem em que termos o direito ao trabalho deve ser concedido. A seguir, transcrevem-se, a título de exemplo, apenas os quatro primeiros dos 34 explicitados nos incisos do artigo:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
III - fundo de garantia do tempo de serviço;
IV - salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
..............

[5] Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostram o seguinte indicador da concentração de renda - percentagem da renda apropriada pelos que representam 1% da população. Aqui, agruparam-se os países por algumas faixas de percentuais mais próximos:
a) Catar e Brasil: 29% e 28,3%;
b) Chile, Líbano, Turquia, Emirados Árabes, Iraque e Índia: entre 23,7% e 21,3%;
c) Colômbia, Estados Unidos, Rússia, Tailândia, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, África do Sul e Egito: entre 20,5% e 19,1%;
d) Barein, Costa do Marfim e Irã: entre 18% e 16,3%.
Ver dados em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/03/recordista-em-desigualdade-pais-estuda-alternativas-para-ajudar-os-mais-pobres

[6] Essas informações constam da Figura 13, na pág. 164, da tese de doutoramento de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, de setembro de 2016, defendida na Universidade de Brasília (UnB), intitulada "A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013". Ver em http://dx.doi.org/10.26512/2016.09.T.22005

[7] O direito à vida, um “direito natural”, constou indiretamente dos dois primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada, em 26 de agosto de 1789, pela Assembleia constituída no processo da Revolução Francesa:
“Artigo 1. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamentadas senão sobre a utilidade comum. Artigo 2. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são: a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão. Ver: http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/DeclaraDireitos.pdf
Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da ONU, ver:
https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
Mencionem-se nesta Declaração da ONU:
Artigo 3.º Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

[8]Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” [seguem 78 direitos específicos].

02/07/2022

 

PRESENTE E FUTURO – 2 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A HABITAÇÃO

Nesse esforço de colocar em discussão os 11 direitos sociais[1] previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, achei importante examinar, após a publicação do artigo em que abordei a alimentação[2], o direito à moradia.

Em se tratando de direitos sociais, num país de extrema desigualdade e carências no atendimento de necessidades básicas, torna-se difícil até mesmo ordenar esses direitos segundo prioridade. Examinando, porém, a história da humanidade, inclusive pensando no ser humano como um ser vivo, com a característica, portanto, de luta pela sobrevivência, coloquei em primeiro lugar a alimentação e, agora, parece-me dever ser o abrigo a próxima prioridade nesta abordagem.

Em artigos anteriores[3], foi mencionado que o direito ao trabalho constitui categoria especial porque, além do fato de proporcionar a realização do ser humano, como fator de crescimento – por meio da aquisição de conhecimentos, aprendizado de cooperação, de participação na construção da cultura e outras conquistas – o direito ao trabalho, na sociedade mercantil, permite o direito à renda e, com ela, a aquisição de bens e serviços capazes de proporcionar acesso à ampliação de outros direitos, quando não alcançados por políticas públicas, como a saúde[4], a educação, a informação, o lazer etc. Na sociedade capitalista, a necessidade de venda da força de trabalho, sem a obtenção de um equivalente ao valor total produzido em bens e serviços – e, portanto, sendo gerada grande disparidade na distribuição do resultado do trabalho social – esse direito leva à luta por eliminação dessa desigualdade. Por isso, ele será objeto de exame mais adiante nesta série.

A habitação[5], ou moradia, vivenda ou, ainda, em termos mais simples, o abrigo, leva a que a propriedade ou posse da habitação, ao longo do desenvolvimento dos indivíduos, deva se tornar preocupação essencial. Trata-se de garantir a proteção do sol, da chuva, da queda de árvores e de outros fenômenos da natureza, bem como dos animais daninhos, e para uso de um local confortável capaz de proporcionar o descanso e o sono reparador, permitindo a conservação da saúde. Acresçam-se a essas funções elementares e fundamentais da habitação, tantas outras, ao proporcionar o ambiente para: a convivência de familiares e amigos, com trocas de amabilidades e experiências; a privacidade; o estudo individual, complementar ao da escola, e o trabalho em casa (seja simplesmente o doméstico, seja o realizado no “home office”) etc. Esse meio de proteção constitui-se em objeto de preocupação fundamental dos adultos integrantes da família. A sabedoria popular criou um provérbio simples e adequado a essa necessidade: “quem casa quer casa”; mas também dela precisa quem opta pela vida de solteiro.

A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018) do IBGE permite conhecer a seguinte síntese sobre a questão da habitação no Brasil:

a) a população estimada era 207 milhões de habitantes, dos quais 176 milhões estavam nas cidades e 31 milhões na zona rural, resultando numa taxa de urbanização de 85%. Esta proporção da população nas cidades bem como a velocidade da sua aglomeração nesses espaços explica grande parte das elevadas, concentradas e crescentes demandas de infraestrutura e correspondentes serviços públicos como os de transporte, saúde, educação e outros;

b) quanto à ocupação do domicílio, 152 milhões residiam em domicílio próprio, 35 milhões em alugados e 20 milhões em domicílios cedidos;

c) do ponto de vista de arranjos familiares, 10 milhões eram do tipo unifamiliar; 29 milhões do tipo casal sem filhos; 121 milhões, casal com filhos; 11 milhões eram do tipo "arranjo formado por mulher sem cônjuge e com filho(s) até 14 anos", dos quais, 4 milhões formados por mulheres brancas e filhos e 7 milhões por mulheres negras ou pardas e filhos; outros tipos de arranjos familiares reuniam os demais 36 milhões de brasileiros.

No exame da questão habitacional[6], tornou-se muito relevante a pesquisa do IBGE, iniciada em 2012 e denominada “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua” que investiga temas relacionados com as condições da residência:

Visa acompanhar as flutuações trimestrais e a evolução, no curto, médio e longo prazos, da força de trabalho, e outras informações necessárias para o estudo do desenvolvimento socioeconômico do País. Para atender a tais objetivos, a pesquisa foi planejada para produzir indicadores trimestrais sobre a força de trabalho e indicadores anuais sobre temas suplementares permanentes (como trabalho e outras formas de trabalho, cuidados de pessoas e afazeres domésticos, tecnologia da informação e da comunicação etc.), investigados em um trimestre específico ou aplicados em uma parte da amostra a cada trimestre e acumulados para gerar resultados anuais, sendo produzidos, também, com periodicidade variável, indicadores sobre outros temas suplementares. Tem como unidade de investigação o domicílio.[7]

A PNAD Contínua referente a 2018 revela, para efeito de se ter uma síntese da questão para o Brasil como um todo, as seguintes informações:

            - população total: 207,9 milhões de habitantes

                - cor ou raça branca (%): 43,1

                - cor ou raça preta (%): 9,3

                - cor ou raça parda (%): 46,5

            - população por faixa de idade (em milhões)[8]:

                - 0 a 4 anos: 13,1        - 5 a 13 anos: 25,5      - 14 a 17 anos: 11,8       - 18 a 19 anos: 6,7    

                - 20 a 24 anos: 16,0    - 25 a 29 anos: 15,0    - 30 a 39 anos: 33,0       - 40 a 49 anos: 28,7    

                - 50 a 59 anos: 25,0    - 60 a 64 anos: 10,1  - 65 anos ou mais: 21,9

            - condição no domicílio:

                - responsável: 71,0 (34,2%)

                - cônjuge ou companheiro(a): 44,1 (21,2%)

                - filho ou enteado(a): 70,7 (34,0%)

                - outro: 22,0 (10,6%)

Os dados extraídos da mesma PNAD Contínua, relativos às condições de infraestrutura das habitações, podem ser, antes de expostos, sintetizados com os seguintes destaques:

a)      100 mil são “casas de cômodos, cortiços ou cabeças de porco[9]”; este tipo de “domicílio” não é aceitável como habitação para um ser humano.

b)      Quanto à fonte de abastecimento d’água, dos 71 milhões de domicílios, 5,3 milhões têm acesso a água por meios não seguros do ponto de vista de contaminação por patógenos. Exemplos: nas grandes aglomerações urbanas, sobretudo das verdadeiras megalópoles, o que significam “poço raso, freático, cacimba, fonte ou nascente”? Certamente locais contaminados.

c)      Quanto à informação sobre canalização e banheiro, pode-se perceber que a água não entra canalizada em 1,7 milhão de domicílios.

d)      No que se refere ao esgotamento sanitário, pense-se nos 21,1 milhões de domicílios com “fossa não ligada à rede” e nos 2,2 milhões com “outra forma de esgotamento”. Neste caso, uma leitura pode ser “porta da casa”!

e)      um último destaque refere-se ao destino dos resíduos sólidos. O IBGE refere-se a lixo, embora esta palavra não induza à distinção entre vários tipos de resíduos, como os recicláveis, os passíveis de reuso, os tóxicos etc. A expressão “resíduos sólidos” (ou “líquidos”, para efluentes) contribui para se obter uma destinação correta, diferentemente da palavra “lixo”, secularmente visto como uma mistura de todos os resíduos, que hoje não podem ser tratados de forma homogênea.
Em 6,3 milhões de domicílios a destinação não garante condições adequadas para a saúde, pois ou os resíduos são queimados (com as mais diversas consequências negativas para a sociedade, desde a poluição ambiental até incêndios, danos a animais e plantas etc.) ou têm destino não especificado.

Detalhemos, então, os dados escolhidos na base do IBGE e a partir dos quais foram elaborados os destaques acima:

            -tipo de domicílio (em milhões):

                        - total: 71,0                 - apartamento: 9,8

                        - casa: 61,1                 - casa de cômodos, cortiço ou cabeça de porco: 0,1

            - fonte de abastecimento d’água: 71,0

                        - rede geral de distribuição: 61,0       - poço profundo ou artesiano: 4,9

                        - poço raso, freático ou cacimba: 2,3             - fonte ou nascente: 1,5

                        - outra forma de abastecimento: 1,5

            - canalização: 69,26

- banheiro: 69,33

- esgotamento sanitário:

            - rede geral ou fossa ligada à rede: 47,1

            - fossa não ligada à rede: 21,1

            - outra forma de esgotamento: 2,2

- destino do lixo:

- coletado diretamente: 58,9              - coletado em caçamba: 5,8  

- queimado na propriedade: 5,3         - outro destino: 1,0.               

Examinando-se a PNAD Contínua (2021), quanto ao Programa Bolsa Família, transferência de política pública capaz de contribuir em alguma proporção para a melhoria da condição habitacional, constata-se que 18,6 milhões de pessoas moravam em domicílio em que algum morador recebeu rendimento desse Programa.

Cabe acrescentar a caracterização desses moradores em termos de educação formal:

            - 5,3% não tinham instrução,

            - 48,6% tinham ensino fundamental incompleto ou equivalente,

- 10,5% tinham ensino fundamental completo ou equivalente,

            - 11,3% tinham ensino médio incompleto ou equivalente,

            - 21,6% tinham ensino médio completo ou equivalente,

            - 1,4% tinham ensino superior incompleto ou equivalente,

            - 1,3% tinham ensino superior completo.

Outras informações significativas para esse exame da questão habitacional – quanto ao direito à habitação – no Brasil, podem ser encontradas na publicação do IBGE “Aglomerados subnormais”[10], designação técnica, com esforços de conceituação precisa, para “favelas” e outras denominações para áreas urbanas com habitações precárias ou arremedos delas.

Foram identificados, no Censo de 2010 (o de 2022 terá início em agosto deste ano), 6.329 aglomerados subnormais, 11,4 milhões de pessoas (6% da população) e 3,2 milhões de domicílios particulares ocupados (5,6%).

Matéria do Jornal da USP publicou foto (abaixo) da favela Paraisópolis em São Paulo que evidencia o desafio a ser enfrentado com relação às condições de moradia que, conforme o IBGE, alcançava, no Censo de 2010, 6% da população ou 11,4 milhões de habitantes.

Os dados acima apresentados representam uma síntese da grande parcela da população brasileira que enfrenta a precariedade das condições da habitação, o que remete para esforços inadiáveis de formulação de políticas e destinação de recursos para apoiar as famílias que vivem nessas condições na obtenção de moradia digna. Essa dignidade deve incluir a infraestrutura de necessidades correlatas, como saúde, educação, transporte etc. Os tipos de apoio às famílias, no caso da habitação propriamente dita, variarão de acordo com o extrato de renda por membro da família.



Favela Paraisópolis, Morumbi. Foto: Jorge Maruta/Jornal da USP[11].

 

Parece claro, por outro lado, que a questão da moradia está intrinsecamente relacionada com os determinantes do êxodo rural e os processos de migrações em geral em busca de postos de trabalho ou da mudança para outros que exijam mais qualificações e remunerem melhor. Isto significa que, em última análise, o “planejamento urbano” torna-se inevitável, mas o modo de produção capitalista – fundamentado na determinação individual das decisões de investimento e suas consequências em termos de localização dos meios de produção – não é compatível com o planejamento da produção social e o consequente assentamento ordenado das populações. Um conceito básico e simples de mercado (capitalista, em razão do modo de produção hegemônico dos últimos séculos), apresentado por José Augusto Drummond[12], lembra as dificuldades de estabelecer planejamentos urbanos e habitacionais na nossa sociedade: mercado é um “conjunto de ações e iniciativas, individuais, espontâneas, imprevisíveis, descoordenadas entre si” (p. 123).

 

Ivo V. Pedrosa, Recife, 28/06/2022.



[1] O conjunto dos direitos mencionados no artigo 6º da Constituição Federal contempla: Educação, Saúde, Alimentação, Trabalho, Lazer, Moradia, Transporte, Segurança, Previdência Social, Proteção à Maternidade e à Infância e Assistência aos Desamparados.

[4] Mencionem-se, a título de exemplos, os planos de “saúde complementar” de empresas privadas de saúde, uma parte da mercantilização dos cuidados com a saúde.

[5] Habitação é palavra oriunda do latim habitat, que significa morada. Como palavra latina passou a ser utilizada em português pela Ecologia para significar “conjunto de circunstâncias físicas e geográficas que oferece condições favoráveis à vida e ao desenvolvimento de determinada espécie animal ou vegetal” e “tipo de ambiente caracterizado por um conjunto de condições bióticas e abióticas integradas”; e também pela Antropogeografia para significar “conjunto de condições de organização e povoamento pelo homem do meio em que vive” (Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0).
Registre-se que o primeiro componente da palavra Ecologia é oriundo da palavra grega oikos, que significa casa e também compõe a palavra Economia, originalmente, o estudo das “normas – nomos, em grego – da casa”.

[8] O conhecimento da distribuição da população por essas faixas de idade torna-se importante para efeito de formulação de determinadas políticas públicas. Assim, por exemplo, as faixas de 5 a 24 anos importam para as políticas educacionais dos vários níveis de ensino e aquelas de 60 e mais, para políticas públicas de interesse dos cidadãos de maior idade.

[9] O CORTIÇO CABEÇA DE PORCO
A região portuária abrigou o maior cortiço da história do Rio. Se hoje costumamos nos referir a “cabeça de porco” como sinônimo de sobrados multifamiliares insalubres, o nascimento deste termo remete a 1880. Próximo à estação ferroviária Central do Brasil, o Cabeça de Porco original constituía-se como um verdadeiro bairro, com sobrados subdivididos em diversos quartos. O nome era uma referência ao adorno do portal de entrada: a escultura da cabeça de um suíno.
O Cabeça de Porco ganhou fama pela persistência. Durante o Império, não foram poucas as tentativas de desativá-lo. Em 1891, por exemplo, um contrato da municipalidade com o engenheiro Carlos Sampaio previa a construção de um túnel e a desapropriação de imóveis. Mas no meio do caminho lá estava ele: o Cabeça de Porco.
Dois anos depois, entretanto, o prefeito Barata Ribeiro determinou a sua eliminação. As obras do túnel João Ricardo puderam então começar - mas levariam longos 30 anos. Diziam que nele chegaram a morar, ao mesmo tempo, 4 mil pessoas.
https://www.facebook.com/descortinandorio/

[10] IBGE - http://lagf.org/2013/pdf/Camila%20Santos.pdf

Aglomerados subnormais “é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”.

[12] “Conceitos Básicos para a Análise de Situações de Conflito em torno de Recursos Naturais”, in: Roberto Bartholo Jr. et alii – A Difícil Sustentabilidade; política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.