PRESENTE E FUTURO – MECANISMOS DA DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA NO BRASIL
Ivo V. Pedrosa – https://ivopedrosa.academia.edu
No meu primeiro texto, sobre a reconstrução do país, neste
blog (ver em https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/2022/05/presentee-futuro-os-horizontes-vista-e.html),
em que procurei examinar aspectos do processo de reconstrução do Brasil após os
anos do golpe (2016 até este de 2022, considerando, neste segundo caso, a
hipótese de derrota do fascismo nas urnas, em outubro), dei destaque às
políticas sociais, sobretudo em razão da óbvia urgência decorrente da fome, do
desemprego e da redução da renda por habitante.
Além das maiores carências materiais provocadas pelas
políticas neoliberais e entreguistas, com perdas nas condições de vida e nas
riquezas do território, a sociedade brasileira foi atacada pelo desmonte de
estruturas importantes para a democracia participativa, construídas ao longo de
anos. Refiro-me aos órgãos de deliberação sobre políticas públicas que foram
simplesmente varridos do mapa da administração pública federal, por meio de
revogação “pura e simples” de dispositivos legais criadores e reguladores, ou
por meio do desmonte dos colegiados, via destituição de pessoas experientes e
corte de recursos para manutenção[1].
O Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, foi o
produto de uma iniciativa de cunho meramente destrutivo de mecanismos de
participação de segmentos da sociedade nas decisões sobre as políticas
públicas, construídos penosamente ao longo de anos.
Em sua ementa lê-se: "Extingue e estabelece
diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública
federal". Ressalte-se que a revogação dizia respeito a instrumentos legais
anteriores a 1º de janeiro de 2019, numa clara demonstração de que se tratava
de execução de promessa de campanha - “eu vim para destruir”! - do Presidente
eleito em 2018, com o uso de propagação de notícias falsas e exploração da
precária Educação resultante de décadas de descaso com políticas públicas
voltadas para a formação do cidadão. As justificativas apresentadas na
Exposição de Motivos EM nº 19, de mesma data, foi assinada pelo então Ministro
da Casa Civil Onyx Dornelles Lorenzoni, conhecido membro da equipe mais próxima
do Presidente da República, pela sua capacidade de executar qualquer “ordem”.
Não há, na EM 19, nenhuma apresentação específica de
disfuncionalidade de qualquer das diversas políticas públicas (Saúde, Educação,
Trabalho etc.) objeto de deliberação pelos Conselhos e órgãos similares
desmontados. A menos que se considerem justificativas frases cheias de
generalidades. Fica claro da leitura dos documentos que o objetivo foi
exclusivamente extinguir essas instâncias administrativas. Também fica claro o
objetivo quando se considera ter sido propalado que a medida – extinguir 100
Conselhos - seria uma comemoração pelos “100 dias de Governo”![2]
Quanto ao Decreto, observe-se que no mês seguinte
(maio) ao da edição (abril de 2019) várias revogações ocorreram, provocadas por
protestos e medidas judiciais contra os abusos de poder praticados com sua
edição.
Destaquem-se inicialmente alguns trechos das
justificativas para a edição do Decreto:
a) "Trata-se de proposta que busca controlar a incrível
proliferação de colegiados no âmbito da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional por meio da extinção em massa de colegiados criados
antes de 1º de janeiro de 2019...". Veja-se que a extinção alcançou,
indiscriminadamente, todos os colegiados criados anteriormente ao início do ano
da edição do Decreto;
b) "A situação de excesso de colegiados é tão
grave que não se conseguiu realizar levantamento confiável sobre o total de
colegiados existentes...". Observe-se, foi decretada a extinção sem um
"levantamento confiável" dos colegiados existentes;
c) a Exposição de Motivos cita, "problemas muito
mais graves do excesso de colegiados": "grupos de pressão, tanto
internos quanto externos à administração, que se utilizam de colegiados, com
composição e modo de ação direcionados, para tentar emplacar (sic) que não
estão conforme a linha das autoridades eleitas democraticamente". É o caso
de perguntar: a que se destinam participantes de deliberativos se não for fazer
pressão pelos interesses que defendem?
E continua: "Quanto ao último ponto, cumpre
destacar inclusão na proposta da revogação (negrito no original) do
Decreto nº 8.243, de 2014, que institui a Política Nacional de Participação
Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, e dá outras
providências"[3].
Segundo a Exposição, "esse ato, utilizando de linguagem deliberadamente
imprecisa, visa estimular a criação e o fortalecimento de colegiados integrados
por grupos políticos específicos para se contrapor ao poder das autoridades
eleitas...".
O Decreto nº 9.812, de 30 de maio de 2019, restringiu
o alcance do Decreto nº 9.759, comentado acima, que também foi objeto da Ação
Direta de Inconstitucionalidade - ADIN nº 6.121, impetrada pelo Partido dos
Trabalhadores (PT). Esta ADIN suspendeu dispositivos do Decreto nº 9.759,
conforme decisão do Plenário em 13.06.2019[4].
Mecanismos de democracia participativa: os
Conselhos de representantes dos segmentos da sociedade civil e as Conferências
Nacionais para discussão de políticas públicas
Esses mecanismos foram articulados na Política
Nacional de Participação Social - PNPS[5], criada pelo Decreto nº
8.243, de 23 de maio de 2014: “Institui a Política Nacional de Participação
Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, e dá outras
providências”. Ver também: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2014/10/CartilhaPNPS1.pdf.
Nesta cartilha encontram-se dois conceitos especialmente importantes: o da PNPS
(“A Política Nacional de Participação Social (PNPS) é o conjunto de conceitos e
diretrizes relativos às instâncias e mecanismos criados para possibilitar o
diálogo, a aprendizagem e o compartilhamento de decisões entre o governo
federal e a sociedade civil”; o outro conceito é o da sociedade civil: “O
cidadão, os coletivos, os movimentos sociais, as suas redes e suas
organizações”.
Ainda segundo essa cartilha, “A PNPS segue algumas
diretrizes que norteiam a sua concepção, implementação e monitoramento. São
elas:
• o reconhecimento da participação social como direito
do cidadão e expressão de sua autonomia;
• a complementaridade, transversalidade e integração
entre mecanismos e instâncias da democracia representativa, participativa e
direta;
• a solidariedade, cooperação e respeito à diversidade
para a construção de valores de cidadania e de inclusão social;
• o direito à informação, à transparência e ao
controle social nas ações públicas;
• a valorização da educação para a cidadania ativa;
• a autonomia, o livre funcionamento e a independência
das organizações da sociedade civil;
• a ampliação dos mecanismos de controle social”.
O art. 2º do Decreto nº 8.243/2014 estabelece o completo alcance da PNPS:
Art. 2º Para os fins deste Decreto, considera-se:
I - sociedade civil - o cidadão, os coletivos, os movimentos
sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas
organizações;
II - conselho de políticas públicas - instância colegiada temática
permanente, instituída por ato normativo, de diálogo entre a sociedade civil e
o governo para promover a participação no processo decisório e na gestão de
políticas públicas;
III - comissão de políticas públicas - instância colegiada
temática, instituída por ato normativo, criada para o diálogo entre a sociedade
civil e o governo em torno de objetivo específico, com prazo de funcionamento
vinculado ao cumprimento de suas finalidades;
IV - conferência nacional - instância periódica de debate, de
formulação e de avaliação sobre temas específicos e de interesse público, com a
participação de representantes do governo e da sociedade civil, podendo
contemplar etapas estaduais, distrital, municipais ou regionais, para propor
diretrizes e ações acerca do tema tratado;
V - ouvidoria pública federal - instância de controle e
participação social responsável pelo tratamento das reclamações, solicitações,
denúncias, sugestões e elogios relativos às políticas e aos serviços públicos,
prestados sob qualquer forma ou regime, com vistas ao aprimoramento da gestão
pública;
VI - mesa de diálogo - mecanismo de debate e de negociação com a
participação dos setores da sociedade civil e do governo diretamente envolvidos
no intuito de prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais;
VII - fórum interconselhos - mecanismo para o diálogo entre
representantes dos conselhos e comissões de políticas públicas, no intuito de
acompanhar as políticas públicas e os programas governamentais, formulando
recomendações para aprimorar sua intersetorialidade e transversalidade;
VIII - audiência pública - mecanismo participativo de caráter
presencial, consultivo, aberto a qualquer interessado, com a possibilidade de
manifestação oral dos participantes, cujo objetivo é subsidiar decisões
governamentais;
IX - consulta pública - mecanismo participativo, a se realizar em
prazo definido, de caráter consultivo, aberto a qualquer interessado, que visa
a receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado
assunto, na forma definida no seu ato de convocação; e
X - ambiente virtual de participação social - mecanismo de
interação social que utiliza tecnologias de informação e de comunicação, em
especial a internet, para promover o diálogo entre administração pública
federal e sociedade civil.
Parágrafo único. As definições previstas neste Decreto não
implicam a desconstituição ou alteração de conselhos, comissões e demais
instâncias de participação social já instituídas no âmbito do governo federal”.
Com relação às conferências nacionais, mencionadas no item IV
acima, deve ser considerada a pesquisa abordada em AVRITZER (2012), em que
foram incluídas, das 115 realizadas desde os anos 1940 (no Governo Vargas), 74
o foram durante o governo Lula. Essa quantidade restringe o levantamento
conforme critério especificado: “Para os efeitos deste trabalho iremos
definir as conferências nacionais como IPs (Instituições Participativas) de
deliberação sobre políticas públicas no nível nacional de governo que são
convocadas pelo governo federal e organizadas nos três níveis da Federação.
Desta maneira, estaremos descartando, para os objetivos deste trabalho, todas
as conferências que não tiveram as fases locais ou que não foram tornadas
deliberativas no momento da sua convocação” (p.8). O autor acrescenta que
“Ainda que o governo federal tenha a prerrogativa de convocar as conferências
nacionais, algumas delas estão previstas em lei e sua convocação pelo governo
federal é obrigatória. Esse é o caso da saúde, da assistência social e do
recém-criado sistema de segurança alimentar” (nota de rodapé da pág.8).
Como se
vê, os mecanismos de participação destacados neste artigo – Conselhos e
Conferências Nacionais de Política Pública -, mesmo tendo sido apenas parte da
PNPS aprovada em 2014, constituiriam, se restaurados em sua plenitude,
excelente elemento de dinamização e controle, pela sociedade, da democratização
das políticas públicas, especialmente as relacionadas com os direitos sociais.
Recife, 13
de maio de 2022 (134 anos após a frustrada abolição completa da escravidão).
[1] Sobre essas
questões de órgãos participativos, mencione-se:
a) O art. 1º da Constituição Federal, que define a República Federativa do
Brasil, constituída como Estado Democrático de Direito, após alinhar seus
fundamentos, afirma no parágrafo único: "Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição" (Grifo do autor deste artigo). O título VIII da mesma
Constituição trata da Ordem Social e, no seu capítulo I, "Disposição
Geral", no artigo 193, está disposto: "A ordem social tem como base o
primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais". O
parágrafo único deste artigo estabelece: "O Estado exercerá a função de
planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação
da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de
avaliação dessas políticas".
b)
O texto de AVRITZER, Leonardo. Conferências Nacionais: Ampliando e
Redefinindo os padrões de Participação Social no Brasil. Texto para discussão
n°1.739. IPEA, Rio de Janeiro, maio de 2012.
c)
Em 29/09/2016, logo após o golpe parlamentar-midiático-judicial, o regime de
exceção, com apoio do Congresso (“mais conservador da história da República”,
conforme reconhecimento frequente, sancionou a Lei nº 12.341, cuja ementa dispõe:
“Altera as Leis n º 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe
sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e 11.890, de
24 de dezembro de 2008, e revoga a Medida Provisória nº 717, de 16 de março de
2016”, introduziu desmonte administrativo com profundas alterações na estrutura
do Poder Executivo.
[2] O Decreto e a
Exposição de Motivos podem ser lidos no site https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9759.htm.
[3] Matéria do boletim
da Câmara dos Deputados, de 28/10/2014, informou sobre a ação desse Poder no
sentido de revogar o Decreto que instituiu a Política Nacional de Participação
Social. Segundo a matéria, "O governo perdeu a primeira votação na Câmara
dos Deputados depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff. A oposição
obteve o apoio de partidos da base, como PMDB e PP, e conseguiu aprovar o
projeto do líder do DEM, deputado Mendonça Filho (PE), que susta o decreto da
presidente que criou a Política Nacional de Participação Social (Decreto
8.243/14). Fonte: Agência Câmara de Notícias.
[4]
Decisão: O Tribunal, por maioria, deferiu
parcialmente a medida cautelar para, suspendendo a eficácia do § 2º do artigo
1º do Decreto nº 9.759/2019, na redação dada pelo Decreto nº 9.812/2019,
afastar, até o exame definitivo desta ação direta de inconstitucionalidade, a
possibilidade de ter-se a extinção, por ato unilateralmente editado pelo Chefe
do Executivo, de colegiado cuja existência encontre menção em lei em sentido
formal, ainda que ausente expressa referência "sobre a competência ou a
composição", e, por arrastamento, suspendeu a eficácia de atos normativos
posteriores a promoverem, na forma do artigo 9º do Decreto nº 9.759/2019, a
extinção dos órgãos, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson
Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que
concediam integralmente a cautelar. Presidência do Ministro Dias Toffoli.
Plenário, 13.06.2019.
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/decreto/d8243.htm.
Ver
também: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2014/10/CartilhaPNPS1.pdf.
Nesta cartilha encontram-se dois conceitos especialmente importantes: o da PNPS
- “A Política Nacional de Participação Social (PNPS) é o conjunto de conceitos
e diretrizes relativos às instâncias e mecanismos criados para possibilitar o
diálogo, a aprendizagem e o compartilhamento de decisões entre o governo
federal e a sociedade civil”; o outro conceito é o da sociedade civil - “O
cidadão, os coletivos, os movimentos sociais, as suas redes e suas
organizações”.
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