01/08/2022

 

PRESENTE E FUTURO  4 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: O TRABALHO

 

O Direito ao Trabalho, um dos 11 direitos sociais definidos pela Constituição Federal em seu artigo 6º, em que esta série de artigos está focada, foi algumas vezes objeto de comentários em artigos anteriores a este, seja pela importância desta atividade humana do ponto de vista individual e social, seja pelas relações com os outros direitos, relações que justificaram as rápidas menções anteriores[1].

A atividade humana de trabalhar pode ser tomada de um ponto de vista utilitário – prover os meios de subsistência – ou, de forma mais abrangente, como uma atividade também capaz de proporcionar um sentido para a vida. Nesse segundo grupo, podem ser colocados os casos da produção artística dos mais diversos tipos, da produção intelectual do conhecimento, do exercício de missões religiosas e da militância por causas sociais ou da representação de segmentos da sociedade em organizações específicas para decisões coletivas etc.

O trabalho, além de um direito, há milênios, certamente, tem sido inscrito como dever dos indivíduos, conforme se percebe na sabedoria popular, registrada pelos provérbios ou ditados como, por exemplo: “Deus ajuda quem cedo madruga”. Como a religiosidade é difundida de forma significativa, cabe lembrar o enunciado bíblico, constante do Antigo Testamento, que expressou a penitência imposta ao ser humano pelo cometimento do pecado no “Paraíso”: “Comerás o pão com o suor do teu rosto”[2].

A sociedade, desde suas primeiras experiências de socialização – a reprodução por meio da constituição de família ou a formação de grupos para caça e coleta de alimentos e objetos para produção de abrigos e utensílios – estabeleceu divisão de trabalho, o que pressupõe reconhecimento de diversidade de habilidades e capacidades, inclusive as de coordenação, supervisão etc. Mais do que essa divisão do trabalho, no entanto, foi essencial, em distante período da Pré-História, para explicar a evolução das relações sociais e, especificamente, de poder, a individualização da propriedade da terra.

Ao destacar a propriedade privada da terra, é importante trazer a síntese, feita por Engels[3], dos estágios estabelecidos por Lewis H. Morgan[4], da História da humanidade: estado selvagem, barbárie e começos da civilização. Disse Engels: “Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem – Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados; as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – Período em que aparecem a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano. Começos da civilização – Período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte” (p. 25).

Importa, para nos situarmos no atual momento vivido pela sociedade brasileira, apontar que esta se insere numa etapa da História da Humanidade em que o modo de produção hegemônico é o Capitalismo, que subordina todas as formas de relações sociais às específicas, aquelas conhecidas como “relações sociais de produção”. Estas garantem a produção de mercadorias por meio do trabalho e a reprodução e acumulação do capital[5].

O papel do trabalho no processo de acumulação de capital não exclui o reconhecimento de um direito humano a oportunidades de trabalho, sob pena de se lhe negar a vida digna, e esta somente será possível com muitos outros direitos a serem conquistados com a vida que lhe for garantida.

É natural abordar o desemprego na conjuntura presente, ao tratar do direito ao trabalho. Primeiramente, porque se trata de evidência da negação desse direito, a mais de uma dezena de milhões de brasileiros que não encontram o que é a base para as condições de sobreviver com dignidade. Ao se referir a essa realidade, o IBGE[6] assim o define: “O desemprego se refere às pessoas com idade para trabalhar que não estão trabalhando, mas estão disponíveis e tentam encontrar trabalho”.

Antes de apontar os principais dados da carência de trabalho, apresentam-se na tabela a seguir dados da população brasileira das faixas etárias em que se situam os potenciais demandantes de trabalho. A tabela agrega a população total do país em faixas etárias a partir dos 14 anos, limite mínimo de idade para contratação pelos empregadores, sem um limite superior, de modo a alcançar todas as pessoas desejosas de exercer atividade remunerada. O crescimento médio da população com 14 e mais anos estimada para o período (2015 a 2022) foi de 1,3% ao ano:

a) Procurou-se reduzir o número de grupos apresentados pelo IBGE para quatro, de forma a mostrarem, aproximadamente, as idades em que se cursam os ensinos médio e superior, a faixa anterior à dos idosos, até “60 anos e mais”, esta, a dos idosos, segundo algumas classificações.

b) Com as faixas pensadas para associar o trabalho à educação formal, busca-se reforçar a importância da Educação, mas alerta-se que isso não significa vê-la essencialmente como uma preparadora de mão de obra, como fazem os que concebem a Educação como mercadoria. Trata-se sobretudo de preparar cidadãos para tornar a sociedade cada vez mais, justa e sustentável.

c) A proporção da população com direito ao trabalho se situa em torno de 90% do total.

Brasil - População residente por grupos de idade, de 14 anos ou mais (1.000 pessoas)2016 e 2021

Grupo de idade

2016

2021

Total (T)

204.532

212.650

14 a 19 anos

33.853

30.755

20 a 24 anos

17.071

17.004

25 a 59 anos

99.622

105.030

60 anos ou mais

34.102

40.874

Subtotal (ST)

184.648

193.663

ST/T em %

90

91

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

Examinando-se a taxa de desemprego entre o 2º trimestre de 2019 e o 1º trimestre deste ano de 2022, verificou-se uma oscilação entre um mínimo de 11,1%, em três dos 12 trimestres, e um máximo de 14,9%, em dois desses períodos trimestrais. A menor taxa de desemprego, 11,1%, é a das últimas medições divulgadas, ou seja, acompanha as mais altas taxas de inflação, em doze meses, dentre as calculadas há muitos anos, e a redução nas expectativas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Não é preciso obter mais evidências da falência da orientação neoliberal das “políticas econômicas”! Será que merecem esse nome, as medidas que acompanham discursos cheios de afirmações contrárias a estas realidades?

Mas, esses 11,1% de desemprego, segundo a mesma pesquisa realizada continuamente pelo IBGE, indicam maior gravidade se destacados os seguintes aspectos:

a)      37,8% dos desempregados são de pessoas com 14 a 24 anos de idade, ou seja, para aqueles que estão começando a vida profissional;

b)      53,9% são mulheres, contra 46,1% homens, numa demonstração clara das desigualdades de gênero na distribuição das oportunidades escassas.

É importante, nesta reflexão sobre o “Direito ao Trabalho”, tomar, para o primeiro trimestre de 2022, e para igual período 2015 (ano anterior ao Golpe Parlamentar-Judicial-Midiático de 2016), as informações sobre a estrutura do “mercado de trabalho” – visto aqui como o espaço social para exercício de atividade produtiva individual, autônoma, ou a busca de relações sociais de trabalho com vínculos contratuais, com alguma organização, lucrativa ou não. A tabela a seguir resume os dados mais relevantes para nossa reflexão (1.000 pessoas, com 14 anos ou mais);

O espaço social do trabalho

1º trim. 2015

1º trim. 2022

População na força de trabalho

99.957

107.224

População ocupada

92.023

95.275

População desocupada

7.934

11.949

Fora da força de trabalho

63.849

65.454

Empregado no setor privado (exclusive trabalhadores domésticos), com carteira

...

34.875

Empregador com CNPJ

...

3.310

Empregador sem CNPJ

...

785

Conta própria com CNPJ

...

6.223

Conta própria sem CNPJ

...

19.061

Trabalhador familiar auxiliar

...

1.932

Rendimento médio real habitual das pessoas ocupadas (R$)

1.840

2.548

Massa de rendimento real habitual de todos os trabalhos das pessoas ocupadas (R$ milhões)

163.798

237.673

Fonte: IBGE[7]

Os números acima, representativos de um período de 7 anos, induzem a alguns destaques:

a)     a) a população compondo a força de trabalho (em idade de trabalhar), ou seja, o conjunto dos detentores do direito ao trabalho, cresceu 7,3% no período considerado. Olhando-se, contudo, a ocupação dessa população, constata-se que o crescimento da parte ocupada foi de 3,5%, e o da desocupada, de 5,1%;[8] 

b)     b) o contingente “fora da força de trabalho” aumentou 2,5%;

c)     c) com relação a algumas informações importantes, a pesquisa ainda não investigava, no primeiro trimestre de 2015, impossibilitando o conhecimento da evolução. Destaquem-se, no entanto, alguns graus de informalização, que representa falta de proteção do Sistema de Seguridade Social: o número de empregadores sem CNPJ[9], 785 mil, e o número de pessoas trabalhando por conta própria sem esse registro de sua condição de trabalhador: 19,1 milhões;

d)     d)  a evolução do rendimento médio real habitual das pessoas ocupadas mostra uma elevação de 38,5% no período de sete anos considerado; isso deve ser analisado em conjunto com o aumento indicado acima de maior crescimento do segmento de desocupados (5,1%) do que o dos ocupados (3,5%). Isto é, a massa de rendimentos gerados na atividade produtiva é dividida por um número menor de pessoas.

O encaminhamento, a partir desta terceira década do século XXI, de medidas para a restauração do direito ao trabalho, diante dos retrocessos ocorridos desde 2016, será de suma importância para a restauração, também, do atendimento aos demais direitos sociais definidos como garantia do Estado Democrático de Direito, que a sociedade brasileira se propôs a implantar naquele já distante ano de 1988.

Desde a publicação do trabalho principal de John Maynard Keynes[10], a sociedade tem diante de si o desafio de aceitar a imprescindível ação do Estado para reduzir o processo contraditório entre a opulência cada vez maior de pequeníssima fração dela, tomado o conjunto de nações, e a miséria de enorme maioria. No último capítulo de sua obra, intitulado, “Notas finais sobre a filosofia social a que poderia conduzir a [sua] teoria geral”, Keynes afirma: “Os principais inconvenientes da sociedade econômica em que vivemos são sua incapacidade para procurar o pleno emprego e sua arbitrária e desigual distribuição da riqueza e da renda. É evidente o nexo da teoria anteriormente exposta com o primeiro; mas também é importante para o segundo” (p. 257). Após sintetizar questões teóricas de sua obra, envolvendo “eliminação das grandes diferenças de riqueza e de renda por meio da tributação direta” e a relação dessas medidas com as propensões a consumir, a investir e os efeitos sobre o emprego, Keynes enuncia “a conclusão de que, nas condições contemporâneas, o crescimento da riqueza, longe de depender da abstinência [poupança] dos ricos, como geralmente se supõe, tem mais probabilidades de encontrar nela um impedimento” (p. 258).

A questão que permanece no embate político tem como raiz a defesa da liberdade numa perspectiva absolutamente individual e sem considerar que as verdadeiras decisões da sociedade continuam se fundamentando, na Idade Contemporânea, como nas anteriores, na propriedade privada dos meios de produção, protegida pelo Estado em nome de uma liberdade que impede a redistribuição da riqueza e da renda, capaz de gerar emprego.

Ivo V. Pedrosa

Recife, 30 de julho de 2022.

 



[1] Alimentação: https://www.blogger.com/blog/post/edit/885351445742996830/8246134545398947695

Habitação: https://www.blogger.com/blog/post/edit/885351445742996830/6619712002625824400

Assistência aos Desamparados: https://www.blogger.com/blog/post/edit/885351445742996830/9141054331632159821

[2] Gênesis, 3,19. O caráter de sacrifício ou penitência atribuído ao trabalho encontra-se na etimologia da palavra trabalho. Diz, a esse respeito, o dicionarista Antônio Houaiss que a palavra "trabalho" se originou na palavra latina "tripalium", um instrumento de tortura.

[3] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Vitória, s/d.

[4] MORGAN, Lewis H. Ancient Society, or Researches in the lines of Human Progress from Savagery trough Barbarism to Civilization. London: Mac Millan and Co., 1877. Esta referência foi feita por Engels, no prefácio à primeira edição de seu livro mencionado na nota de rodapé anterior.

[5] Uma brevíssima síntese do papel do trabalho no modo de produção capitalista encontra-se em FRANCO, D. S. e FERRAZ, D. L. da S. (página 846 da versão em PDF): Cad. EBAPE.BR, 17, (spe), nov2019: https://doi.org/10.1590/1679-395176936

[6] https://www.ibge.gov.br/indicadores#desemprego Ver a Nota Técnica do IBGE sobre as estatísticas acerca da força de trabalho: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101807.pdf

“A PNAD Contínua capta, trimestralmente, toda a população ocupada e a população desocupada, seguindo a Resolução I (resolução sobre as estatísticas de trabalho, ocupação e subutilização da força de trabalho) adotada na 19ª Conferência Internacional dos Estatísticos do Trabalho, que é realizada sob os auspícios da Organização Internacional do Trabalho – OIT (https://ilostat.ilo.org/about/standards/icls/icls-documents/#icls19). Abrange todos os empregados, registrados (empregados com carteira de trabalho assinada, incluindo o subgrupo dos trabalhadores domésticos com carteira de trabalho assinada, militares e funcionários públicos estatutários) e não registrados (empregados sem carteira de trabalho assinada), e os trabalhadores independentes (conta própria, empregadores e trabalhadores familiares auxiliares). Capta, ainda, as pessoas não ocupadas em procura efetiva por trabalho (pessoas desocupadas), abarcando, assim, toda a força de trabalho do País.”

[8] Sobre essas classificações de segmentos da força de trabalho, ver (páginas 34-43): https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101733_notas_tecnicas.pdf

[9] CNPJ: Cadastro Nacional das Pessoa Jurídicas, da Secretaria da Receita Federal.

[10] Teoria General de la Ocupacion, el Interes y el Dinero. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, tercera edición em espanhol, 1951 (primera edición inglesa, 1936).

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