PRESENTE E
FUTURO – 3 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A
ASSISTÊNCIA AOS DESAMPARADOS
Optou-se
nesta série de artigos, onze dos quais dedicados, cada um, a um direito social
explicitado no texto atual da Constituição Federal (artigo 6º)[1], por adotar uma sequência
em que se inicia com os direitos relacionados com as necessidades mais
fundamentais para a sobrevivência dos indivíduos, seja do ponto de vista dos
bens e serviços referentes a elas (alimentação e habitação), seja do ponto de
vista de carência absoluta de recursos para obtê-los, por parte dos indivíduos
considerados “desamparados”.
O direito ao
trabalho, a ser apreciado no próximo artigo, fundamenta-se na relação indispensável
entre: por um lado, o atendimento às necessidades relacionadas com os direitos
sociais, tanto os dois já abordados quanto os demais, inclusive o tratado neste
artigo e, por outro lado, nas duas formas de obtenção dos bens e serviços com
que possa contar o cidadão, alternativa ou conjuntamente: a remuneração pelo
exercício de atividade produtiva ou o recebimento de transferências gratuitas,
quer para aquisição de bens e serviços, quer estes diretamente. Essas formas de
transferências devem ser disponibilizadas, seja pelo Estado, seja pelos demais
indivíduos, isoladamente ou por meio de organizações, sejam elas empresas, sejam
as tradicionais, não estritamente[2] lucrativas (igrejas,
sindicatos, associações e cooperativas etc.) ou outras, privadas, mas sem fins
lucrativos (as chamadas “organizações não governamentais”).
Assim, a
partir das características do trabalho e do direito a ele, pode ser
estabelecida a seguinte sequência de abordagem dos direitos sociais, objetivo
desta série de artigos:
a)
os
dois primeiros direitos, Alimentação e Habitação, já tratados nos artigos 3 e 4,
desta série[3],
e o que agora é abordado, a Assistência aos Desamparados, estão relacionados
mais estreitamente com o direito individual à vida, de tal modo que a
sociedade, por meio do Estado, ou não, precisa de forma inadiável, atender a essas
necessidades. Essas atividades estão também associadas à “solidariedade”
(palavra mais utilizadas nas situações de emergência) e à “ajuda humanitária”;
b)
o
direito ao trabalho[4]
gera, como contrapartida, o dever do Estado de possibilitar aos indivíduos a
participação nos processos de produção, ou, dito de outra forma, “gerar emprego
ou estimular sua criação” (seja por meio dos serviços públicos de responsabilidade
dos aparelhos do Estado, seja, nessa sociedade capitalista em que vivemos, das empresas
de todos os tipos de natureza jurídica, ou das organizações privadas não
governamentais). Nos três casos, a sociedade gerará, simultaneamente, emprego e
renda para os trabalhadores;
c) os demais sete direitos sociais exigem, em maior ou menor grau, de acordo com o nível da renda média da sociedade e de sua desigual distribuição, o concurso de esforços de indivíduos e entidades privadas, mas, certamente serão mais efetivas as ações do Estado para o atendimento da exigência constitucional dos referidos direitos dos indivíduos.
A ação direta do Estado é motivo de muitas divergências entre segmentos de cidadãos, pois abrange várias categorias de atividades:
1. o
exercício direto daquelas atividades produtivas com natureza estratégica para
toda a sociedade (como, por exemplo, fornecimento de água potável e energias,
com ênfase nas fontes sustentáveis);
2. a
concessão de direito de exploração de recursos naturais, sobretudo na atual
fase de risco da humanidade com as mudanças climáticas decorrentes da ação
humana;
3. a
regulação das atividades desenvolvidas por entidades privadas, lucrativas ou
não; e
4. a expropriação de bens (terra, imóveis estoques) necessários à realização de atividades indispensáveis a ações do Estado.
No caso específico da Assistência aos Desamparados, cabe sobretudo ao Estado a transferência, para esses indivíduos, de recursos financeiros que não conseguem obter no “mercado de trabalho”, além de dotação de recursos para entidades dedicadas à assistência aos indivíduos carentes de recursos. A realização dessas transferências exige uma estrutura do Sistema Tributário Nacional com ênfase na progressividade, tendo em vista o grau de desigualdade da renda no nosso país[5]. Essa característica dos impostos tem sido de implantação especialmente difícil no Brasil.
A participação percentual da arrecadação do Imposto de Renda no total da arrecadação de todos os tributos, no Brasil e em grupos de países selecionados da OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, em relação ao PIB, no período 1965-2013, situou-se, em termos aproximados da seguinte forma, tomando-se percentuais mais característicos do conjunto da série, não necessariamente os extremos:
a) na Escandinávia e em países anglófilos:
entre 45% e 50%;
b) em sete países da Europa
Ocidental: entre 30% e 35%;
c) em cinco países do Sul da Europa:
entre 15% e 30%;
d) em 19 países de América Latina,
apenas a partir de 1990: entre 20% e 25%;
e) no Brasil: de 1965 a 1980, cerca de 10%; entre 1980 e 1995, o patamar mudou para 15%; de 2000 até 2013, a carga situou-se entre 15% e 20%[6].
Os desamparados
constituem um segmento da sociedade que exige a indagação sobre as razões para
sua existência. Por que as relações sociais dão origem a essa categoria de
excluídos dos direitos que permitem uma vida digna?
A resposta a
essa pergunta exigiria amplo esforço de reflexão econômica, sociológica,
antropológica e, talvez, psicológica, para o qual não há espaço neste artigo.
Mas, uma observação a partir da Economia Política, levando-se em conta a
hegemonia do modo de produção capitalista no processo histórico moderno e
contemporâneo, pode apontar, como fator determinante do surgimento e
crescimento do número de desamparados, a dinâmica da acumulação de capital, que
motiva o desenvolvimento técnico-científico, visando à redução dos custos com a
mão-de-obra, e, simultaneamente, produz barreiras à sua acumulação, por excluir
massa de desempregados que provocam o estreitamento do mercado de consumo dos
produtos a serem vendidos. Esta contradição do Capitalismo, uma das revelações
da crítica empreendida pela teoria do materialismo histórico-dialético, dá
origem a abordagens, rapidamente comentadas a seguir, acerca do processo de
desigualdade e exclusão, origem e acelerador da luta de classes.
Visualizamos
as seguintes abordagens sobre as relações entre os cidadãos, com ou não a
intermediação do Estado:
a)
a
filantrópica, que promove a mobilização de
pessoas e recursos para destiná-los a entidades voltadas para o atendimento das
necessidades básicas dos desamparados;
b)
a
religiosa, que a partir da crença de ser a humanidade, e tudo o mais no
universo, criação de Deus, pai de todos, o direito à vida digna decorrerá, no
caso do monoteísmo cristão, do cumprimento dos deveres ou exortações constantes
dos textos bíblicos;
c)
a
reformadora, que entende ser possível introduzir reformas no
Capitalismo, de modo que os mecanismos de concentração de capital e renda,
intrínsecos à sua dinâmica, sejam neutralizados, tornando esse modo de produção
viável; a contradição dessa alternativa está na dificuldade de tornar efetiva a
democracia representativa numa sociedade em que a sua enorme maioria não obtém,
por meio apenas da própria atuação, o mínimo para sobreviver, o que gera uma
ausência de representantes desse segmento significativo nas Casas do Congresso,
das Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais;
d)
a
revolucionária que, fundamentada na teoria do
materialismo-histórico-dialético, entende ser indispensável a tomada do poder
do Estado, em mãos dos detentores do capital (especialmente no Capitalismo
Financeiro, a forma mais concentradora de riqueza, renda e poder, desse modo
social de produção), tornando-o um Estado Democrático Popular.
Numa
perspectiva ampla e a partir do reconhecimento do direito à vida, há
motivação, em variados e diversificados segmentos da sociedade, para a ação
humanitária. De um modo geral esta ação promove a mobilização de pessoas e
recursos para o atendimento das necessidades básicas das pessoas com renda
baixa e situações de vulnerabilidade. Mas, a vida digna pressupõe o usufruto de
vários outros direitos além daqueles que minimamente a garantem. Citem-se os
exemplos da cultura e do conhecimento de outros lugares e de outras pessoas. Os
onze direitos estabelecidos no artigo 6º da Constituição Federal asseguram
condições mínimas (alimentação, habitação, assistência aos excluídos ou
desamparados), mas os outros direitos são todos essenciais para o exercício da
cidadania, aspecto central da convivência democrática. Repetindo-os: Saúde, a Proteção
à Maternidade e à Infância, a Educação, o Transporte – seja para o trabalho,
seja para outras atividades indispensáveis, como os cuidados de saúde e o
direito ao Lazer – e, por fim, a Previdência Social. Este último pode ser
considerado o direito à vida após a fase “produtiva” ou de “aptidão para
geração de valor, por meio da força de trabalho”.
O direito fundamental à vida[7], presente na Constituição
Federal[8], foi objeto de
reconhecimento em dois movimentos da contemporaneidade: a Revolução Francesa
(1789) e a fundação da Organização das Nações Unidas (1945). O direito social
“Assistência aos Desamparados” está claramente relacionado com esse direito à
vida.
Quanto ao primeiro aspecto – o de o trabalho ser um meio de obtenção de remuneração – apresenta-se como desafio para a sociedade a garantia de oportunidades para o exercício de atividades, garantia que constitui um direito para os cidadãos, o “direito ao trabalho”. Mas, como garantir essas oportunidades senão com a possibilidade de exercício pelos aparelhos do Estado de planejamento para a criação dos postos de trabalho? Esse exercício de atividade estatal é visto por segmentos da sociedade como intervenção nas atividades, constituindo-se em cerceamento da “livre iniciativa”. Livre iniciativa para produzir desigualdades e carências?
Ivo V. Pedrosa – Recife, 11/07/2022.
[2] Aqui, a palavra “estritamente” se justifica diante do fato de o lucro, no sentido da Economia, ser o resultado perseguido por excelência em atividades produtivas de bens e serviços; um resultado que significa, de forma simplificada, um “excedente” ou diferença entre a receita obtida com a venda da produção e todos os custos incorridos nesta. Mas, no caso da empresa (privada, pública ou de economia mista), o lucro é uma forma de excedente que é destinado, após o pagamento de imposto, aos proprietários dos meios de produção, quaisquer que sejam as naturezas jurídicas das empresas; no caso de cooperativas, por exemplo, o excedente é distribuído entre os cooperados de acordo com o estatuto. Ver, a respeito, a Lei nº 5.764, de 16/12/1971, que definiu a Política Nacional de Cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas. Ela está publicada, com anotações de leis que a modificaram, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm#:~:text=L5764&text=LEI%20N%C2%BA%205.764%2C%20DE%2016,cooperativas%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.
https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/2022/07/presente-efuturo-4-direitos-sociais-de.html
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
III - fundo de garantia do tempo de serviço;
IV - salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
..............
a) Catar e Brasil: 29% e 28,3%;
b) Chile, Líbano, Turquia, Emirados Árabes, Iraque e Índia: entre 23,7% e 21,3%;
c) Colômbia, Estados Unidos, Rússia, Tailândia, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, África do Sul e Egito: entre 20,5% e 19,1%;
d) Barein, Costa do Marfim e Irã: entre 18% e 16,3%.
Ver dados em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/03/recordista-em-desigualdade-pais-estuda-alternativas-para-ajudar-os-mais-pobres
“Artigo 1. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamentadas senão sobre a utilidade comum. Artigo 2. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são: a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão. Ver: http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/DeclaraDireitos.pdf
Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da ONU, ver:
https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
Mencionem-se nesta Declaração da ONU:
“Artigo 3.º Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
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