17/07/2022

 

PRESENTE E FUTURO  3 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A ASSISTÊNCIA AOS DESAMPARADOS

 

Optou-se nesta série de artigos, onze dos quais dedicados, cada um, a um direito social explicitado no texto atual da Constituição Federal (artigo 6º)[1], por adotar uma sequência em que se inicia com os direitos relacionados com as necessidades mais fundamentais para a sobrevivência dos indivíduos, seja do ponto de vista dos bens e serviços referentes a elas (alimentação e habitação), seja do ponto de vista de carência absoluta de recursos para obtê-los, por parte dos indivíduos considerados “desamparados”.

O direito ao trabalho, a ser apreciado no próximo artigo, fundamenta-se na relação indispensável entre: por um lado, o atendimento às necessidades relacionadas com os direitos sociais, tanto os dois já abordados quanto os demais, inclusive o tratado neste artigo e, por outro lado, nas duas formas de obtenção dos bens e serviços com que possa contar o cidadão, alternativa ou conjuntamente: a remuneração pelo exercício de atividade produtiva ou o recebimento de transferências gratuitas, quer para aquisição de bens e serviços, quer estes diretamente. Essas formas de transferências devem ser disponibilizadas, seja pelo Estado, seja pelos demais indivíduos, isoladamente ou por meio de organizações, sejam elas empresas, sejam as tradicionais, não estritamente[2] lucrativas (igrejas, sindicatos, associações e cooperativas etc.) ou outras, privadas, mas sem fins lucrativos (as chamadas “organizações não governamentais”).

Assim, a partir das características do trabalho e do direito a ele, pode ser estabelecida a seguinte sequência de abordagem dos direitos sociais, objetivo desta série de artigos:

a)    os dois primeiros direitos, Alimentação e Habitação, já tratados nos artigos 3 e 4, desta série[3], e o que agora é abordado, a Assistência aos Desamparados, estão relacionados mais estreitamente com o direito individual à vida, de tal modo que a sociedade, por meio do Estado, ou não, precisa de forma inadiável, atender a essas necessidades. Essas atividades estão também associadas à “solidariedade” (palavra mais utilizadas nas situações de emergência) e à “ajuda humanitária”;

b)   o direito ao trabalho[4] gera, como contrapartida, o dever do Estado de possibilitar aos indivíduos a participação nos processos de produção, ou, dito de outra forma, “gerar emprego ou estimular sua criação” (seja por meio dos serviços públicos de responsabilidade dos aparelhos do Estado, seja, nessa sociedade capitalista em que vivemos, das empresas de todos os tipos de natureza jurídica, ou das organizações privadas não governamentais). Nos três casos, a sociedade gerará, simultaneamente, emprego e renda para os trabalhadores;

c)    os demais sete direitos sociais exigem, em maior ou menor grau, de acordo com o nível da renda média da sociedade e de sua desigual distribuição, o concurso de esforços de indivíduos e entidades privadas, mas, certamente serão mais efetivas as ações do Estado para o atendimento da exigência constitucional dos referidos direitos dos indivíduos.

A ação direta do Estado é motivo de muitas divergências entre segmentos de cidadãos, pois abrange várias categorias de atividades:

1. o exercício direto daquelas atividades produtivas com natureza estratégica para toda a sociedade (como, por exemplo, fornecimento de água potável e energias, com ênfase nas fontes sustentáveis);

2. a concessão de direito de exploração de recursos naturais, sobretudo na atual fase de risco da humanidade com as mudanças climáticas decorrentes da ação humana;

3. a regulação das atividades desenvolvidas por entidades privadas, lucrativas ou não; e

4. a expropriação de bens (terra, imóveis estoques) necessários à realização de atividades indispensáveis a ações do Estado.

No caso específico da Assistência aos Desamparados, cabe sobretudo ao Estado a transferência, para esses indivíduos, de recursos financeiros que não conseguem obter no “mercado de trabalho”, além de dotação de recursos para entidades dedicadas à assistência aos indivíduos carentes de recursos. A realização dessas transferências exige uma estrutura do Sistema Tributário Nacional com ênfase na progressividade, tendo em vista o grau de desigualdade da renda no nosso país[5]. Essa característica dos impostos tem sido de implantação especialmente difícil no Brasil.

A participação percentual da arrecadação do Imposto de Renda no total da arrecadação de todos os tributos, no Brasil e em grupos de países selecionados da OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, em relação ao PIB, no período 1965-2013, situou-se, em termos aproximados da seguinte forma, tomando-se percentuais mais característicos do conjunto da série, não necessariamente os extremos:

a) na Escandinávia e em países anglófilos: entre 45% e 50%;

b) em sete países da Europa Ocidental: entre 30% e 35%;

c) em cinco países do Sul da Europa: entre 15% e 30%;

d) em 19 países de América Latina, apenas a partir de 1990: entre 20% e 25%;

e) no Brasil: de 1965 a 1980, cerca de 10%; entre 1980 e 1995, o patamar mudou para 15%; de 2000 até 2013, a carga situou-se entre 15% e 20%[6].

Os desamparados constituem um segmento da sociedade que exige a indagação sobre as razões para sua existência. Por que as relações sociais dão origem a essa categoria de excluídos dos direitos que permitem uma vida digna?

A resposta a essa pergunta exigiria amplo esforço de reflexão econômica, sociológica, antropológica e, talvez, psicológica, para o qual não há espaço neste artigo. Mas, uma observação a partir da Economia Política, levando-se em conta a hegemonia do modo de produção capitalista no processo histórico moderno e contemporâneo, pode apontar, como fator determinante do surgimento e crescimento do número de desamparados, a dinâmica da acumulação de capital, que motiva o desenvolvimento técnico-científico, visando à redução dos custos com a mão-de-obra, e, simultaneamente, produz barreiras à sua acumulação, por excluir massa de desempregados que provocam o estreitamento do mercado de consumo dos produtos a serem vendidos. Esta contradição do Capitalismo, uma das revelações da crítica empreendida pela teoria do materialismo histórico-dialético, dá origem a abordagens, rapidamente comentadas a seguir, acerca do processo de desigualdade e exclusão, origem e acelerador da luta de classes.

Visualizamos as seguintes abordagens sobre as relações entre os cidadãos, com ou não a intermediação do Estado:

a)      a filantrópica, que promove a mobilização de pessoas e recursos para destiná-los a entidades voltadas para o atendimento das necessidades básicas dos desamparados;

b)      a religiosa, que a partir da crença de ser a humanidade, e tudo o mais no universo, criação de Deus, pai de todos, o direito à vida digna decorrerá, no caso do monoteísmo cristão, do cumprimento dos deveres ou exortações constantes dos textos bíblicos;

c)      a reformadora, que entende ser possível introduzir reformas no Capitalismo, de modo que os mecanismos de concentração de capital e renda, intrínsecos à sua dinâmica, sejam neutralizados, tornando esse modo de produção viável; a contradição dessa alternativa está na dificuldade de tornar efetiva a democracia representativa numa sociedade em que a sua enorme maioria não obtém, por meio apenas da própria atuação, o mínimo para sobreviver, o que gera uma ausência de representantes desse segmento significativo nas Casas do Congresso, das Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais;

d)      a revolucionária que, fundamentada na teoria do materialismo-histórico-dialético, entende ser indispensável a tomada do poder do Estado, em mãos dos detentores do capital (especialmente no Capitalismo Financeiro, a forma mais concentradora de riqueza, renda e poder, desse modo social de produção), tornando-o um Estado Democrático Popular.

Numa perspectiva ampla e a partir do reconhecimento do direito à vida, há motivação, em variados e diversificados segmentos da sociedade, para a ação humanitária. De um modo geral esta ação promove a mobilização de pessoas e recursos para o atendimento das necessidades básicas das pessoas com renda baixa e situações de vulnerabilidade. Mas, a vida digna pressupõe o usufruto de vários outros direitos além daqueles que minimamente a garantem. Citem-se os exemplos da cultura e do conhecimento de outros lugares e de outras pessoas. Os onze direitos estabelecidos no artigo 6º da Constituição Federal asseguram condições mínimas (alimentação, habitação, assistência aos excluídos ou desamparados), mas os outros direitos são todos essenciais para o exercício da cidadania, aspecto central da convivência democrática. Repetindo-os: Saúde, a Proteção à Maternidade e à Infância, a Educação, o Transporte – seja para o trabalho, seja para outras atividades indispensáveis, como os cuidados de saúde e o direito ao Lazer – e, por fim, a Previdência Social. Este último pode ser considerado o direito à vida após a fase “produtiva” ou de “aptidão para geração de valor, por meio da força de trabalho”.

O direito fundamental à vida[7], presente na Constituição Federal[8], foi objeto de reconhecimento em dois movimentos da contemporaneidade: a Revolução Francesa (1789) e a fundação da Organização das Nações Unidas (1945). O direito social “Assistência aos Desamparados” está claramente relacionado com esse direito à vida.

Quanto ao primeiro aspecto – o de o trabalho ser um meio de obtenção de remuneração – apresenta-se como desafio para a sociedade a garantia de oportunidades para o exercício de atividades, garantia que constitui um direito para os cidadãos, o “direito ao trabalho”. Mas, como garantir essas oportunidades senão com a possibilidade de exercício pelos aparelhos do Estado de planejamento para a criação dos postos de trabalho? Esse exercício de atividade estatal é visto por segmentos da sociedade como intervenção nas atividades, constituindo-se em cerceamento da “livre iniciativa”. Livre iniciativa para produzir desigualdades e carências?

Ivo V. Pedrosa – Recife, 11/07/2022.



[1] Repitam-se aqui, como nos artigos anteriores, para melhor acompanhamento na leitura, os direitos sociais constantes do mencionado artigo 6º da Constituição Federal: Educação, Saúde, Alimentação, Trabalho, Lazer, Moradia [habitação, nos artigos desta série], Transporte, Segurança, Previdência Social, Proteção à Maternidade e à Infância e Assistência aos Desamparados.
Esse conjunto de direitos incluem-se nos “direitos humanos” constantes da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, que assim os define: “Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, liberdade de opinião e expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre outros. Todos têm direito a estes direitos, sem discriminação. Ver: https://unric.org/pt/o-que-sao-os-direitos-humanos/

[2] Aqui, a palavra “estritamente” se justifica diante do fato de o lucro, no sentido da Economia, ser o resultado perseguido por excelência em atividades produtivas de bens e serviços; um resultado que significa, de forma simplificada, um “excedente” ou diferença entre a receita obtida com a venda da produção e todos os custos incorridos nesta. Mas, no caso da empresa (privada, pública ou de economia mista), o lucro é uma forma de excedente que é destinado, após o pagamento de imposto, aos proprietários dos meios de produção, quaisquer que sejam as naturezas jurídicas das empresas; no caso de cooperativas, por exemplo, o excedente é distribuído entre os cooperados de acordo com o estatuto. Ver, a respeito, a Lei nº 5.764, de 16/12/1971, que definiu a Política Nacional de Cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas. Ela está publicada, com anotações de leis que a modificaram, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm#:~:text=L5764&text=LEI%20N%C2%BA%205.764%2C%20DE%2016,cooperativas%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.

[4] Deve ser ressaltado que o Trabalho, um dos 11 “direitos sociais” da Constituição, que será abordado no artigo seguinte desta série, deve ser examinado juntamente com os “direitos dos trabalhadores” listados no artigo 7º da Constituição Federal, porque eles definem em que termos o direito ao trabalho deve ser concedido. A seguir, transcrevem-se, a título de exemplo, apenas os quatro primeiros dos 34 explicitados nos incisos do artigo:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
III - fundo de garantia do tempo de serviço;
IV - salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
..............

[5] Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostram o seguinte indicador da concentração de renda - percentagem da renda apropriada pelos que representam 1% da população. Aqui, agruparam-se os países por algumas faixas de percentuais mais próximos:
a) Catar e Brasil: 29% e 28,3%;
b) Chile, Líbano, Turquia, Emirados Árabes, Iraque e Índia: entre 23,7% e 21,3%;
c) Colômbia, Estados Unidos, Rússia, Tailândia, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, África do Sul e Egito: entre 20,5% e 19,1%;
d) Barein, Costa do Marfim e Irã: entre 18% e 16,3%.
Ver dados em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/03/recordista-em-desigualdade-pais-estuda-alternativas-para-ajudar-os-mais-pobres

[6] Essas informações constam da Figura 13, na pág. 164, da tese de doutoramento de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, de setembro de 2016, defendida na Universidade de Brasília (UnB), intitulada "A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013". Ver em http://dx.doi.org/10.26512/2016.09.T.22005

[7] O direito à vida, um “direito natural”, constou indiretamente dos dois primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada, em 26 de agosto de 1789, pela Assembleia constituída no processo da Revolução Francesa:
“Artigo 1. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamentadas senão sobre a utilidade comum. Artigo 2. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são: a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão. Ver: http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/DeclaraDireitos.pdf
Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da ONU, ver:
https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
Mencionem-se nesta Declaração da ONU:
Artigo 3.º Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

[8]Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” [seguem 78 direitos específicos].

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