Venho publicando neste blog[1] uma série de artigos dedicados aos 11 direitos sociais mencionados no artigo 6º da Constituição Federal. Dois artigos, anteriores aos destinados a tratar de cada um dos direitos, abordaram a conjuntura política e de atuação do Estado brasileiro nos anos de 2022-23 e mecanismos de participação de inúmeros segmentos da sociedade em Conselhos e órgãos assemelhados, destroçados no início do governo da frente de direita, em 2019. Eram órgãos destinados à formulação, acompanhamento da execução e avaliação de políticas públicas.
Este artigo, relativo ao lazer, é dedicado ao décimo primeiro
direito, dentre os presentes no artigo 6º da Constituição brasileira de 1988. Os
artigos foram publicados no blog, colocando-se entre os primeiros os que exigem
ações mais urgentes: 1 – Alimentação; 2 – Habitação; 3 – Assistência aos
Desamparados; 4 – Trabalho; 5 – Saúde; 6 – Educação; 7 – Proteção à Maternidade
e à Infância; 8 – Previdência Social; 9 – Transporte; 10 – Segurança; e 11 –
Lazer.
Registre-se que, na Roma antiga, circulava a expressão “panem
et circenses” (com algumas traduções encontradas ao longo dos séculos: “pão e
circo”, “pão e jogos de circos”; “pão e palhaços” etc.), ou seja, alimentação e
lazer, o primeiro e o último dos da lista aqui abordada. O autor da expressão
foi o poeta romano Juvenal que, em suas “Sátiras”, sintetizou criticamente a
limitação das exigências do povo aos poderosos que, com tão pouco, mantinham-se
no poder. Hoje, a premência da volta desses direitos ocorre porque as carências
absolutas e a desigualdade na distribuição deles, além de crescentes ao longo
do tempo, em razão do modo capitalista de produção, foi agravada pelo período
de governo fascista e seus retrocessos, após o golpe de Estado realizado em
2016.
É natural que comecemos a tratar do lazer registrando todas
as experiências que o senso comum vê nos significados dessa palavra e de seus
determinantes: intervalo no trabalho, descanso, repouso, recompensa,
reconstituição de forças e ânimo etc. Pensando-se em atividades compreendidas
pelo usufruto do lazer, temos: diversões, esportes, viagens, prática de jogos,
apreciação de produtos da arte – pintura, escultura, artesanato, cinema,
teatro, leitura de romance, poesia e outros estilos literários. Enfim, trata-se
de enorme diversidade de formas de participação na construção da cultura do
país, mas, também, fonte de espaços de acumulação de capital, por ser
transformada numa típica atividade de “consumo”, expressão muito utilizada pela
Ciência Econômica para indicar fruição dos bens e serviços pelos cidadãos,
individual ou coletivamente.
Sobre a amplitude das produções sociais destinadas ao lazer,
podem ser lembradas as formas de produção para o deleite das pessoas, criadas
ao longo dos tempos: música (som); artes
cênicas – teatro/dança/coreografia – (movimento);
pintura (cor); escultura (volume); arquitetura (espaço); literatura (palavra);
cinema (audiovisual contendo artes anteriores como a música para trilha sonora,
artes cênicas para dublagem e captura de movimentos, pintura, escultura e
arquitetura para o design, e literatura para roteiros); fotografia; história em
quadrinhos; videogames; arte digital (integra artes gráficas computadorizadas
2D, 3D e programação).[2]
Diferentemente da perspectiva aqui adotada – a de direito conquistado pela luta política –, Bernardo
Lazary Cheibub[3]
procurou mostrar a modalidade de turismo que ele identificou, denominada como
"turismo social", como "instrumento de poder e tentativa de
controle por parte do Estado, das grandes instituições e das autoridades
religiosas e burguesas, seja como atividade econômica, seja como experiência
sociocultural" (p. 1).
O autor constata a oferta de oportunidades de acesso ao
turismo por parte das pessoas que teriam escassa ou nenhuma possibilidade de
vivenciá-lo, em razão de sua insuficiente capacidade de aquisição de bens e
serviços no mercado; a partir de então, o autor procura identificar as
motivações para essas ações (..."o que está por trás das ações ..."
dessas instituições.) [4]
De fato, ocorrem duas evoluções. Por um lado, a expansão do capital
levou à identificação de nichos de produção e lucratividade na oferta de
serviços, os mais diversos, ao segmento da população com poder de compra para
tal. O caso do turismo é bem característico, pelas articulações entre as
atividades de hotelaria, transportes, entretenimento, produção cultural, guia
de visitas a monumentos, parques e assim por diante. De outro lado, existe a
demanda pela oferta pública de oportunidades de lazer, por meio de infraestruturas
caracterizadas como "bens públicos", tais como parques, praças,
estádios construídos e mantidos por órgãos públicos, espetáculos subsidiados e
outros produtos de políticas públicas.
Exemplo de demandas de segmentos da sociedade no sentido de criação ou
expansão de ações do Estado é a campanha, iniciada em 2004, em Recife, pela
inclusão de surdos nas atividades culturais, por meio de legendas. A campanha
foi lançada no CINE-PE – Festival de Audiovisual 2004[5].
As despesas com lazer da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-18)
É importante
trazer também ao leitor, interessado em refletir sobre o tema, informações
produzidas pelo IBGE em sua “Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF (2017-18),
destinada, entre outras finalidades, a ponderar os aumentos de preços em
pesquisas sobre inflação.
Tomemos o
dado “Despesa monetária e não monetária per capita mensal com lazer e viagens
esporádicas de lazer (R$)”. É importante considerar que, nos anos de
2017 e 2018, período a que se refere a pesquisa POF, o valor médio do
Salário-Mínimo foi R$ 956,00:
a) o total das duas categorias, no Brasil, foi de R$ 53,93; a distribuição desse valor, entre o meio rural e o urbano, mostra que no primeiro, apenas são gastos 4,7% da despesa total per capita mensal; tomadas as regiões, a distribuição do valor médio em Reais é, conforme esperado, muito injusta: 29,42 no Sudeste e 2,33, no Norte, tendo sido, no Nordeste, somente 8,36;
b) do total de R$ 53,93, nas duas categorias, 34,41 foram gastos por brancos e 18,35 por pretos e pardos;
c) os homens gastaram R$ 35,80 e as mulheres, R$ 18,12;
d) as pessoas com ensino superior completo, gastaram R$ 27,08, aquelas com ensino médio completo, 11,52, e os demais dedicaram valores médios mensais variando de 1,07 (sem instrução) a 7,49 (com ensino fundamental incompleto);
e) quanto à ocupação e formalização em relação a essa ocupação, verificou-se que os extremos estavam entre os que tinham carteira assinada (13,00), e os empregados domésticos (1,04);
f) quanto à composição da família, o lazer e as viagens esporádicas para essa atividade, os gastos foram os maiores naquelas com mais de um adulto e sem criança (19,81), tendo sido o menor valor nos casos de família composta por apenas um adulto com pelo menos uma criança.
Na mesma
pesquisa, o IBGE, ao subdividir as categorias lazer e viagens esporádicas de lazer, permitiu o melhor conhecimento da natureza do lazer nos diversos
estratos considerados no parágrafo acima.
As atividades de lazer consideradas foram:
1. eventos culturais, esportivos e recreação;
2. leitura, brinquedos e jogos.
Quanto às viagens esporádicas de lazer, o
desdobramento das despesas foi em:
1. alimentação, transporte e hospedagem; e
2. passeios e eventos, pacotes turísticos nacionais e internacionais; ou seja, o lazer propriamente dito.
Vejamos uma síntese, em % do total da despesa per capita de cada
grupo destacado.
No Brasil:
a) 53% foram destinados a “alimentação, transporte e hospedagem” nas viagens de lazer; considerando-se o objetivo das viagens – o lazer, nas atividades culturais, esportivas, conhecimento de outra sociedade etc. – esse percentual, convenhamos, é muito alto;
b) 19% foram para “passeios e eventos, pacotes turísticos nacionais e internacionais”;
c) 18% foram para “eventos culturais, esportivos e recreação”; e
d) 10% foram para “leitura, brinquedos e jogos”.
Examinando-se
as regiões, os destaques, quanto a desigualdades, são esperados:
a) mais da metade da despesa monetária per capita, nas várias categorias, foi realizada pela população do Sudeste, comparada com os menos de 5% no Norte;
b) de certo modo, surpreende a proximidade dos valores percentuais em relação ao total do País, do Nordeste (15,5%) e do Sul (16,3%);
c) tomando-se as percentagens no total, do País, da despesa per capita com lazer, e observando-se as regiões em que elas se realizam, são alarmantes as disparidades entre o Norte e o Sudeste, quanto ao lazer com eventos culturais, esportivos e recreação, mas, sobretudo, quanto à leitura, brinquedos e jogos;
d) do ponto de vista do sexo, o masculino se apropria de dois terços da despesa per capita, do conjunto das categorias de lazer;
e) a distância entre os que não têm instrução e os que completaram o ensino superior, também no conjunto das categorias de lazer, é enorme: um para 25!
f) mais de um adulto na família leva a que, nessa situação, esses adultos usufruam de dois terços da despesa per capita, do conjunto das categorias consideradas.
Outros direitos sociais inscritos na Constituição
Outros direitos sociais estão presentes na Constituição, além
dos mencionados no artigo 6º, ou se acrescentaram por meio de Emendas ao texto
original, sendo importante sua abordagem em outra série de artigos:
a) direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional;
b) práticas desportivas, formais e não formais;
c) direito à informação sobre a participação das diferentes classes de cidadãos na determinação dos rumos da sociedade;
d) direito ao meio ambiente saudável.
No caso dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, recorramos ao
próprio texto constitucional de 1988 – artigos 215 e 216, transcrevendo-se o primeiro, a seguir:
§ 1º O Estado protegerá as
manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
§ 2º A lei
disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os
diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei
estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao
desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que
conduzem à: (Incluído, juntamente com os incisos a seguir, pela
Emenda Constitucional nº 48, de 2005):
I - defesa e
valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II - produção,
promoção e difusão de bens culturais;
III - formação
de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV -
democratização do acesso aos bens de cultura;
V - valorização da diversidade étnica e
regional.
O direito social às práticas desportivas, formais e não formais, consta, desde 1988, do artigo 217:
É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
Na elaboração deste artigo, destacou-se como um roteiro importante na compreensão do direito social ao lazer no Brasil o trabalho de CHEIBUB ([6]). É significativa esta síntese do autor:
É importante para o campo de estudos do
lazer avaliar não somente as condições materiais, espaciais e
formativo-profissionais das ações do Estado e suas intencionalidades, mas
também a falta de ações e, por conseguinte, a mobilização popular por conta
dessa ausência ou da ineficiência de suas políticas. O lazer está vinculado ao
cotidiano e à relação de sociabilidade entre os sujeitos. Sendo assim, mesmo
com possíveis ausências de atuação estatal na concretização de políticas
sociais, o lazer acontece, persiste, resiste e abrolha onde menos se espera,
onde menos se recebem apoio, incentivo e recursos, à margem do lazer enquanto
direito social.
O lazer, a criança e o adolescente
Ocorre
também na literatura sobre criança e adolescente, a associação de dois
direitos, dentre os mencionados: a cultura e o lazer[7]. Registre-se aqui a
seguinte síntese de publicação da Fundação Abrinq[8]:
A Constituição Federal, em seus artigos 6º e 215, reconhece a
todos os brasileiros o direito à cultura e ao lazer. Essas garantias visam
assegurar uma melhor qualidade de vida e o pleno desenvolvimento pessoal e
social dos cidadãos. Entretanto, grande parte dos municípios brasileiros não
possuem equipamentos esportivos e centros culturais disponíveis à população, o
que dificulta o pleno acesso aos direitos constitucionais citados. A falta de
espaços seguros e protegidos para a prática de atividades culturais e de lazer
restringe o convívio entre diferentes grupos sociais, prática necessária para o
desenvolvimento da tolerância e cultura de paz; expõe crianças e adolescentes ao
risco de violações de direitos; dificulta a ampliação do repertório cultural e
a possibilidade de manifestação de produções culturais próprias ou referentes
às tradições comunitárias, regionais, religiosas e étnicas. (Fundação ABRINQ[9]).
Ao concluir
as reflexões sobre os 11 direitos sociais, previstos na Constituição
Brasileira, o autor desta série de pequenos artigos sente-se compensado pelo
interesse pelas suas reflexões de que vem tomando conhecimento por meio de acessos
computados na divulgação do blog. Ao mesmo tempo em que atribui esse interesse
ao imenso valor desses direitos para a sociedade.
Agradecimentos: o autor agradece a leitura atenta à primeira versão deste artigo feita pelos professores Maria Isabel Pedrosa e João Carvalho.
Recife, agosto de 2023.
Ivo V. Pedrosa
https://ivopedrosa.academia.edu/
[1] https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/
[2]
Paulo Varella. "A sétima
arte; por que o cinema tem este nome?" Em 15 de maio de 2020. Disponível
em: https://arteref.com/cinema/a-setima-arte-por-que-o-cinema-tem-este-nome/
[3] CHEIBUB, Bernardo Lazary. Notas históricas sobre o
turismo social desenvolvido no Brasil e na Europa Ocidental: ideologias,
intenções e características. Trabalho apresentado no XXVII Simpósio
Nacional de História - Conhecimento histórico e diálogo social - Associação
Nacional de História - Brasil. Natal, em 22 a 26 de julho de 2013.
[4] "Neste artigo, tentarei refletir sobre o que está por detrás das ações envolvendo a experiência turística oportunizada em diversos momentos e por diferentes instituições na Europa Ocidental e no Brasil; de maneira geral, quais são suas intenções ao oferecerem e facilitarem o acesso ao turismo para pessoas que teriam escassa ou nenhuma possibilidade de vivenciá-lo, prática intitulada majoritariamente de turismo social”.
[5] http://legendanacional.com.br
A campanha tem uma camisa em que consta, na frente, a frase "Legenda para quem não ouve, mas se emociona" e, nas costas, a frase "Direito ao lazer faz parte da cidadania".
[6] CHEIBUB, Bernardo Lazary. As
contribuições da produção científica para o entendimento do lazer como direito
social. (Capítulo 11). In: GOMES, Christianne Luce; Isayama, Hélder Ferreira
(Orgs.). O Direito ao Lazer no Brasil. Campinas, Autores Associados,
2015. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/236510/direito%20social%20-%20miolo%20-%20final.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 18/07/2023.
[7] Art. 227. É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
[8] “A Fundação Abrinq pelos
Direitos da Criança e do Adolescente, ou simplesmente Fundação Abrinq (https://www.fadc.org.br/), é uma fundação
de direito privado, sem fins lucrativos, constituída em 13 de fevereiro de 1990
– ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – com o objetivo
de mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência, tanto por meio de
ações, programas e projetos, como por meio do estímulo ao fortalecimento de políticas públicas de garantia à
infância e adolescência” (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Funda%C3%A7%C3%A3o_Abrinq).