16/08/2023

PRESENTE E FUTURO – 11 – Direitos Sociais de Volta - Lazer

 

Venho publicando neste blog[1] uma série de artigos dedicados aos 11 direitos sociais mencionados no artigo 6º da Constituição Federal. Dois artigos, anteriores aos destinados a tratar de cada um dos direitos, abordaram a conjuntura política e de atuação do Estado brasileiro nos anos de 2022-23 e mecanismos de participação de inúmeros segmentos da sociedade em Conselhos e órgãos assemelhados, destroçados no início do governo da frente de direita, em 2019. Eram órgãos destinados à formulação, acompanhamento da execução e avaliação de políticas públicas.

Este artigo, relativo ao lazer, é dedicado ao décimo primeiro direito, dentre os presentes no artigo 6º da Constituição brasileira de 1988. Os artigos foram publicados no blog, colocando-se entre os primeiros os que exigem ações mais urgentes: 1 – Alimentação; 2 – Habitação; 3 – Assistência aos Desamparados; 4 – Trabalho; 5 – Saúde; 6 – Educação; 7 – Proteção à Maternidade e à Infância; 8 – Previdência Social; 9 – Transporte; 10 – Segurança; e 11 – Lazer.

Registre-se que, na Roma antiga, circulava a expressão “panem et circenses” (com algumas traduções encontradas ao longo dos séculos: “pão e circo”, “pão e jogos de circos”; “pão e palhaços” etc.), ou seja, alimentação e lazer, o primeiro e o último dos da lista aqui abordada. O autor da expressão foi o poeta romano Juvenal que, em suas “Sátiras”, sintetizou criticamente a limitação das exigências do povo aos poderosos que, com tão pouco, mantinham-se no poder. Hoje, a premência da volta desses direitos ocorre porque as carências absolutas e a desigualdade na distribuição deles, além de crescentes ao longo do tempo, em razão do modo capitalista de produção, foi agravada pelo período de governo fascista e seus retrocessos, após o golpe de Estado realizado em 2016.

É natural que comecemos a tratar do lazer registrando todas as experiências que o senso comum vê nos significados dessa palavra e de seus determinantes: intervalo no trabalho, descanso, repouso, recompensa, reconstituição de forças e ânimo etc. Pensando-se em atividades compreendidas pelo usufruto do lazer, temos: diversões, esportes, viagens, prática de jogos, apreciação de produtos da arte – pintura, escultura, artesanato, cinema, teatro, leitura de romance, poesia e outros estilos literários. Enfim, trata-se de enorme diversidade de formas de participação na construção da cultura do país, mas, também, fonte de espaços de acumulação de capital, por ser transformada numa típica atividade de “consumo”, expressão muito utilizada pela Ciência Econômica para indicar fruição dos bens e serviços pelos cidadãos, individual ou coletivamente.

Sobre a amplitude das produções sociais destinadas ao lazer, podem ser lembradas as formas de produção para o deleite das pessoas, criadas ao longo dos tempos: música  (som); artes cênicas  – teatro/dança/coreografia – (movimento); pintura (cor); escultura (volume); arquitetura (espaço); literatura (palavra); cinema (audiovisual contendo artes anteriores como a música para trilha sonora, artes cênicas para dublagem e captura de movimentos, pintura, escultura e arquitetura para o design, e literatura para roteiros); fotografia; história em quadrinhos; videogames; arte digital (integra artes gráficas computadorizadas 2D, 3D e programação).[2]

Diferentemente da perspectiva aqui adotada a de direito conquistado pela luta política –, Bernardo Lazary Cheibub[3] procurou mostrar a modalidade de turismo que ele identificou, denominada como "turismo social", como "instrumento de poder e tentativa de controle por parte do Estado, das grandes instituições e das autoridades religiosas e burguesas, seja como atividade econômica, seja como experiência sociocultural" (p. 1).

O autor constata a oferta de oportunidades de acesso ao turismo por parte das pessoas que teriam escassa ou nenhuma possibilidade de vivenciá-lo, em razão de sua insuficiente capacidade de aquisição de bens e serviços no mercado; a partir de então, o autor procura identificar as motivações para essas ações (..."o que está por trás das ações ..." dessas instituições.) [4]

De fato, ocorrem duas evoluções. Por um lado, a expansão do capital levou à identificação de nichos de produção e lucratividade na oferta de serviços, os mais diversos, ao segmento da população com poder de compra para tal. O caso do turismo é bem característico, pelas articulações entre as atividades de hotelaria, transportes, entretenimento, produção cultural, guia de visitas a monumentos, parques e assim por diante. De outro lado, existe a demanda pela oferta pública de oportunidades de lazer, por meio de infraestruturas caracterizadas como "bens públicos", tais como parques, praças, estádios construídos e mantidos por órgãos públicos, espetáculos subsidiados e outros produtos de políticas públicas.

Exemplo de demandas de segmentos da sociedade no sentido de criação ou expansão de ações do Estado é a campanha, iniciada em 2004, em Recife, pela inclusão de surdos nas atividades culturais, por meio de legendas. A campanha foi lançada no CINE-PE – Festival de Audiovisual 2004[5].

 

 

As despesas com lazer da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-18)

 

É importante trazer também ao leitor, interessado em refletir sobre o tema, informações produzidas pelo IBGE em sua “Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF (2017-18), destinada, entre outras finalidades, a ponderar os aumentos de preços em pesquisas sobre inflação.

Tomemos o dado “Despesa monetária e não monetária per capita mensal com lazer e viagens esporádicas de lazer (R$)”. É importante considerar que, nos anos de 2017 e 2018, período a que se refere a pesquisa POF, o valor médio do Salário-Mínimo foi R$ 956,00:

a)      o total das duas categorias, no Brasil, foi de R$ 53,93; a distribuição desse valor, entre o meio rural e o urbano, mostra que no primeiro, apenas são gastos 4,7% da despesa total per capita mensal; tomadas as regiões, a distribuição do valor médio em Reais é, conforme esperado, muito injusta: 29,42 no Sudeste e 2,33, no Norte, tendo sido, no Nordeste, somente 8,36;

b)      do total de R$ 53,93, nas duas categorias, 34,41 foram gastos por brancos e 18,35 por pretos e pardos;

c)      os homens gastaram R$ 35,80 e as mulheres, R$ 18,12;

d)      as pessoas com ensino superior completo, gastaram R$ 27,08, aquelas com ensino médio completo, 11,52, e os demais dedicaram valores médios mensais variando de 1,07 (sem instrução) a 7,49 (com ensino fundamental incompleto);

e)      quanto à ocupação e formalização em relação a essa ocupação, verificou-se que os extremos estavam entre os que tinham carteira assinada (13,00), e os empregados domésticos (1,04);

f)       quanto à composição da família, o lazer e as viagens esporádicas para essa atividade, os gastos foram os maiores naquelas com mais de um adulto e sem criança (19,81), tendo sido o menor valor nos casos de família composta por apenas um adulto com pelo menos uma criança.

Na mesma pesquisa, o IBGE, ao subdividir as categorias lazer e viagens esporádicas de lazer, permitiu o melhor conhecimento da natureza do lazer nos diversos estratos considerados no parágrafo acima.

As atividades de lazer consideradas foram:

1.      eventos culturais, esportivos e recreação;

2.      leitura, brinquedos e jogos.

Quanto às viagens esporádicas de lazer, o desdobramento das despesas foi em:

1.      alimentação, transporte e hospedagem; e

2.      passeios e eventos, pacotes turísticos nacionais e internacionais; ou seja, o lazer propriamente dito.

Vejamos uma síntese, em % do total da despesa per capita de cada grupo destacado.

No Brasil:

a)      53% foram destinados a “alimentação, transporte e hospedagem” nas viagens de lazer; considerando-se o objetivo das viagens – o lazer, nas atividades culturais, esportivas, conhecimento de outra sociedade etc. – esse percentual, convenhamos, é muito alto;

b)      19% foram para “passeios e eventos, pacotes turísticos nacionais e internacionais”;

c)      18% foram para “eventos culturais, esportivos e recreação”; e

d)      10% foram para “leitura, brinquedos e jogos”.

Examinando-se as regiões, os destaques, quanto a desigualdades, são esperados:

a)      mais da metade da despesa monetária per capita, nas várias categorias, foi realizada pela população do Sudeste, comparada com os menos de 5% no Norte;

b)      de certo modo, surpreende a proximidade dos valores percentuais em relação ao total do País, do Nordeste (15,5%) e do Sul (16,3%);

c)      tomando-se as percentagens no total, do País, da despesa per capita com lazer, e observando-se as regiões em que elas se realizam, são alarmantes as disparidades entre o Norte e o Sudeste, quanto ao lazer com eventos culturais, esportivos e recreação, mas, sobretudo, quanto à leitura, brinquedos e jogos;

d)      do ponto de vista do sexo, o masculino se apropria de dois terços da despesa per capita, do conjunto das categorias de lazer;

e)      a distância entre os que não têm instrução e os que completaram o ensino superior, também no conjunto das categorias de lazer, é enorme: um para 25!

f)       mais de um adulto na família leva a que, nessa situação, esses adultos usufruam de dois terços da despesa per capita, do conjunto das categorias consideradas.

 

Outros direitos sociais inscritos na Constituição

 

Outros direitos sociais estão presentes na Constituição, além dos mencionados no artigo 6º, ou se acrescentaram por meio de Emendas ao texto original, sendo importante sua abordagem em outra série de artigos:

a)      direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional;

b)      práticas desportivas, formais e não formais;

c)      direito à informação sobre a participação das diferentes classes de cidadãos na determinação dos rumos da sociedade;

d)      direito ao meio ambiente saudável.

No caso dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, recorramos ao próprio texto constitucional de 1988 – artigos 215 e 216, transcrevendo-se o primeiro, a seguir:

 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído, juntamente com os incisos a seguir, pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005):

I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II - produção, promoção e difusão de bens culturais;

III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV - democratização do acesso aos bens de cultura; 

V - valorização da diversidade étnica e regional.


O direito social às práticas desportivas, formais e não formais, consta, desde 1988, do artigo 217: 

É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

Na elaboração deste artigo, destacou-se como um roteiro importante na compreensão do direito social ao lazer no Brasil o trabalho de CHEIBUB ([6]). É significativa esta síntese do autor:

É importante para o campo de estudos do lazer avaliar não somente as condições materiais, espaciais e formativo-profissionais das ações do Estado e suas intencionalidades, mas também a falta de ações e, por conseguinte, a mobilização popular por conta dessa ausência ou da ineficiência de suas políticas. O lazer está vinculado ao cotidiano e à relação de sociabilidade entre os sujeitos. Sendo assim, mesmo com possíveis ausências de atuação estatal na concretização de políticas sociais, o lazer acontece, persiste, resiste e abrolha onde menos se espera, onde menos se recebem apoio, incentivo e recursos, à margem do lazer enquanto direito social.


O lazer, a criança e o adolescente

 

Ocorre também na literatura sobre criança e adolescente, a associação de dois direitos, dentre os mencionados: a cultura e o lazer[7]. Registre-se aqui a seguinte síntese de publicação da Fundação Abrinq[8]:

A Constituição Federal, em seus artigos 6º e 215, reconhece a todos os brasileiros o direito à cultura e ao lazer. Essas garantias visam assegurar uma melhor qualidade de vida e o pleno desenvolvimento pessoal e social dos cidadãos. Entretanto, grande parte dos municípios brasileiros não possuem equipamentos esportivos e centros culturais disponíveis à população, o que dificulta o pleno acesso aos direitos constitucionais citados. A falta de espaços seguros e protegidos para a prática de atividades culturais e de lazer restringe o convívio entre diferentes grupos sociais, prática necessária para o desenvolvimento da tolerância e cultura de paz; expõe crianças e adolescentes ao risco de violações de direitos; dificulta a ampliação do repertório cultural e a possibilidade de manifestação de produções culturais próprias ou referentes às tradições comunitárias, regionais, religiosas e étnicas. (Fundação ABRINQ[9]).

Ao concluir as reflexões sobre os 11 direitos sociais, previstos na Constituição Brasileira, o autor desta série de pequenos artigos sente-se compensado pelo interesse pelas suas reflexões de que vem tomando conhecimento por meio de acessos computados na divulgação do blog. Ao mesmo tempo em que atribui esse interesse ao imenso valor desses direitos para a sociedade.


Agradecimentos: o autor agradece a leitura atenta à primeira versão deste artigo feita pelos professores Maria Isabel Pedrosa e João Carvalho.

Recife, agosto de 2023.

Ivo V. Pedrosa

https://ivopedrosa.academia.edu/


[1] https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/

[2] Paulo Varella. "A sétima arte; por que o cinema tem este nome?" Em 15 de maio de 2020. Disponível em: https://arteref.com/cinema/a-setima-arte-por-que-o-cinema-tem-este-nome/

[3] CHEIBUB, Bernardo Lazary. Notas históricas sobre o turismo social desenvolvido no Brasil e na Europa Ocidental: ideologias, intenções e características. Trabalho apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História - Conhecimento histórico e diálogo social - Associação Nacional de História - Brasil. Natal, em 22 a 26 de julho de 2013.

[4] "Neste artigo, tentarei refletir sobre o que está por detrás das ações envolvendo a experiência turística oportunizada em diversos momentos e por diferentes instituições na Europa Ocidental e no Brasil; de maneira geral, quais são suas intenções ao oferecerem e facilitarem o acesso ao turismo para pessoas que teriam escassa ou nenhuma possibilidade de vivenciá-lo, prática intitulada majoritariamente de turismo social”.

[5] http://legendanacional.com.br

A campanha tem uma camisa em que consta, na frente, a frase "Legenda para quem não ouve, mas se emociona" e, nas costas, a frase "Direito ao lazer faz parte da cidadania".

[6] CHEIBUB, Bernardo Lazary. As contribuições da produção científica para o entendimento do lazer como direito social. (Capítulo 11). In: GOMES, Christianne Luce; Isayama, Hélder Ferreira (Orgs.). O Direito ao Lazer no Brasil. Campinas, Autores Associados, 2015. Disponível em:

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/236510/direito%20social%20-%20miolo%20-%20final.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 18/07/2023.

[7] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).

[8] “A Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, ou simplesmente Fundação Abrinq (https://www.fadc.org.br/), é uma fundação de direito privado, sem fins lucrativos, constituída em 13 de fevereiro de 1990 – ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – com o objetivo de mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência, tanto por meio de ações, programas e projetos, como por meio do estímulo ao fortalecimento de políticas públicas de garantia à infância e adolescência” (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Funda%C3%A7%C3%A3o_Abrinq).

11/07/2023

 PRESENTE E FUTURO – 10 – Direitos Sociais de Volta – Segurança


Venho publicando neste blog[1] uma série de artigos dedicados aos 11 direitos sociais mencionados no artigo 6º da Constituição Federal. Dois artigos, anteriores aos destinados a tratar de cada um dos direitos, abordaram a conjuntura política e de atuação do Estado brasileiro nos anos de 2022-23 e mecanismos de participação de inúmeros segmentos da sociedade em Conselhos e órgãos assemelhados, destroçados no início do governo da frente de direita, em 2019 – órgãos destinados à formulação, acompanhamento da execução e avaliação de políticas públicas, já experimentados no país. 

Este artigo, relativo à SEGURANÇA, é dedicado ao décimo direito abordado nesta série. São os seguintes os 11 direitos, colocando-se entre os primeiros os que exigem ações mais urgentes[2] : 1 – Alimentação; 2 – Habitação; 3 – Assistência aos Desamparados; 4 – Trabalho; 5 – Saúde; 6 – Educação; 7 - Proteção à Maternidade e à Infância; 8 - Previdência Social; 9 – Transporte; 10 – Segurança; e 11 – Lazer. Desse modo, artigos sobre a Segurança (este que escrevo agora) e o Lazer completarão a série.

Segurança soa a todos como algo óbvio, surpreendendo o fato de se constituir em um direito constitucional. Mas, é logo compreensível que o seja, pois a mais rápida reflexão nos convence do quanto os cidadãos anseiam por ela. Vejamos, tomando um dia recente da vida de alguém.

Logo que acorda, antes de ir ao trabalho nos dias “úteis”, o cidadão brasileiro pode estar inseguro, mesmo ainda trancado em sua casa. O noticiário ouvido no café num desses dias iniciais de junho de 2023, trouxe-lhe várias notícias causadoras de insegurança[3] :

a) “houve um assalto no bairro, na noite anterior, e um casal teve o carro e carteiras levados”;

b) “o órgão de acompanhamento e previsão meteorológica lança um alerta para as próximas 24 horas, a partir da probabilidade de chuvas fortes, em razão do que as ruas, rotineiramente, vêm se tornando verdadeiros rios”;

c) “as estatísticas econômicas divulgadas nos últimos dias apontam para continuidade de estagnação da atividade econômica, tornando improvável a redução do índice de desemprego; também não são animadoras as previsões de interrupção da alta dos preços dos gêneros e serviços mais consumidos, o que reduzirá o poder de compra dos salários dos familiares que compõem a população ‘ocupada’; aliás, as estatísticas de níveis médios dos salários não confirmam a perspectiva de alta dessas médias verificada no trimestre anterior. Em suma, do ponto de vista da inserção dos familiares no ambiente da atividade econômica (produção, preço, emprego, renda etc.), são muitos os fatores responsáveis por falta de segurança”;

d) “as boas expectativas quanto à reconstrução das instituições, após os resultados positivos, ainda que por pequena margem, em termos de derrota eleitoral da extrema direita, representam para os cidadãos sérias dúvidas quanto à possibilidade de constituição de um ambiente democrático e, sobretudo, de mudanças capazes de reduzir as profundas desigualdades, estas que são bem visíveis em torno de uma classe média sempre suscetível a comportamentos conservadores e de retrocessos, diante de seus sonhos de se tornar rica”.

Para sorte dos brasileiros, no mesmo mês de junho de 2023, foi sendo registrado, paralelamente a esse noticiário produtor de insegurança, um cenário diferente daquele apresentado nos anos recentes. Na verdade, ao longo do período de sete anos em que esses cidadãos brasileiros foram constatando resultados no avanço das práticas fascistas, foi sendo revelada muita dificuldade de se captar a verdadeira realidade nacional. A mídia convencional, atrelada visceralmente aos interesses sobretudo do capital internacional, frequentemente desinforma a população, seja com a divulgação de notícias falsas, seja com aquelas que deturpam os fatos ou simplesmente com a omissão daqueles fatos que ameaçam os seus projetos e prática de poder, cujo conhecimento completo permitiria a tomada de consciência e a adoção de medidas indispensáveis ao atendimento dos interesses da maioria, ainda com níveis precários de bem-estar.  


Os exemplos citados, para evidenciar a insegurança diária dos cidadãos, sugerem um exame dos direitos individuais e sua relação com a segurança e os demais direitos sociais. Especificamente quanto a este último, observe-se que ela está presente não somente no Preâmbulo da Constituição[4], como no caput do artigo 5º:  

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, ...

Vê-se que a segurança, além de inscrita entre os direitos individuais do artigo 5º, compõe o conjunto sob exame dos 11 direitos sociais do artigo 6º da Constituição Brasileira.

Três grupos de elementos ajudam a dimensionar a alarmante quantidade de fatos relacionados com a insegurança dos cidadãos:

a) primeiro grupo: o aparato estatal, previsto na Constituição Federal para ofertar segurança à sociedade, resumido na Tabela 1:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares”[5];

b) segundo grupo: o elenco de tipos de crimes e condutas similares previsto no Código Penal Brasileiro[6]; e 

c) terceiro grupo: as estatísticas dos crimes, conforme Tabela 2 (com apenas dois exemplos de tipos), produzidas pelos órgãos de segurança e por entidades que se dedicam a estudar os fenômenos relacionados com a segurança[7]


TABELA 1 – BRASIL - Aparato estatal previsto na Constituição Federal para ofertar segurança à sociedade – Instituições Policiais no Brasil - 2022

Esfera de Governo

Agências Policiais

Número

Efetivo

Federal

Polícia Federal

1

13.795

Polícia Rodoviária Federal

1

11.575

Polícia Penal Federal

1

1.000

Polícia Ferroviária Federal

1

189

Departamento de Polícia Legislativa

1

459

Estados e Distrito Federal

Polícia Militar

27

411.241

Polícia Civil

27

109.440

Polícia Penal

27

98.248

Total de Forças Policiais

86

645.947

Competências legais das Agências Policiais:

Polícia Federal Artigo 144 (Constituição Federal):

I - Apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; 

III - exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

Polícia Rodoviária Federal: patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

Polícia Penal Federal: segurança dos estabelecimentos penais federais.

Polícia Ferroviária Federal: patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

Departamento de Polícia Legislativa: preservação da ordem e do patrimônio, bem como pela prevenção e apuração de infrações penais, nos edifícios e dependências externas do Congresso Nacional.

Polícia Militar: polícia ostensiva e a preservação da ordem pública

Polícia Civil: polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares

Polícia Penal: segurança dos estabelecimentos penais estaduais e distritais

Fonte segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública - Atualizado em 02.08.2022: Painel Estatístico de Pessoal - Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; Relatório Analítico Infopen - Sistema Penitenciário Federal; Portal da Transparência do Governo Federal; Departamento de Pessoal da Câmara dos Deputados; Portal de Dados Abertos do Senado Federal; Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública - Ministério da Justiça e Segurança Pública;  Monitor da Violência - G1, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Núcleo de Estudos da Violência da USP; Fórum Brasileiro de Segurança Pública: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/.


O Estado, que busca deter o “monopólio da força”, assumiu, por meio de seus aparelhos, ao longo dos séculos, papéis específicos destinados a garantir a segurança da sociedade. Um exemplo disto está na grande diversidade de normas específicas, infraestrutura, servidores e instrumentos diversos relativos à mobilidade das pessoas, bens e mercadorias – em espaço aéreo, orlas marítimas, vias de transporte de todos os modais etc.[8]. Quanto a essa questão dos transportes, é necessário destacar a competência das três esferas de governo – União, Estados e Distrito Federal e Municípios – no sentido de “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito” (art. 23, inciso XII).

A segurança da sociedade e do Estado está prevista na própria especificação dos direitos individuais destinada a garantir a todos o direito de receber “dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade”. Nesse ponto estão “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”[9].

Os atos do Presidente da República que atentem contra a segurança interna do País (inciso IV do artigo 85) são definidos como crime de responsabilidade.

O significado, para a sociedade, da insegurança jurídica motivou a inclusão do artigo 103-A do poder do Supremo Tribunal Federal de aprovar súmulas que têm efeito vinculante sobre os órgãos públicos especificados[10]

Também está prevista, entre as medidas destinadas à proteção do trabalhador, especificamente à sua segurança no trabalho, “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”[11].

A Tabela 2 apresenta dados sobre o feminicídio nas capitais do Brasil, por Estados, e no Distrito Federal, em 2020 e 2021. Para 2021, a tabela também mostra a taxa de vítimas por 100 mil mulheres, nos mesmos âmbitos geográficos. É importante apontar alguns números:

a) os totais de 242 e 239 crimes, em 2020 e 2021, com redução de apenas 1,2%;

b) observando-se as cinco regiões do país, constatam-se aumentos no Norte e no Nordeste e reduções nas três outras regiões, merecendo destaque a diminuição relativa (16,3%) da região Centro-Oeste;

c) o exame dos dados para o Distrito Federal e as capitais dos Estados indica aumentos em: Belém (198,3%), Natal (148,2%), Teresina (82,5%), Recife (49,2%), Rio de Janeiro (38,4%), Distrito Federal (45,2), Fortaleza (24,2%) e Belo Horizonte (5,8%);

d) quanto às reduções, destacam-se: Campo Grande (87,6%), Vitória (75,3%), Macapá (50,9%), João Pessoa (50,5%) e São Luiz (50,3%). A menor redução foi registrada em Curitiba (0,8%);

e) os registros absolutos foram comparados, pelos produtores das estatísticas, com grupos de 100 mil mulheres. Observa-se que essa taxa varia da mínima de 0,3 em Fortaleza à máxima de 4,3 em Palmas.

TABELA 2 – BRASIL - Feminicídio, conforme estatísticas produzidas pelos órgãos de segurança e por entidades que se dedicam a estudar os fenômenos relacionados com a segurança – 2020-2021.

REGIÕES/UF

Capitais e Distrito Federal

Feminicídios

Taxa por 100 mil mulheres - 2021

Números Absolutos

Variação (%)

2020 (2)

2021

 

Regiões

242

239

-1,2

 

Norte

38

41

7,9

 

Nordeste

61

65

6,6

 

Centro-Oeste

43

36

-16,3

 

Sudeste

78

76

-2,6

 

Sul

22

21

-4,5

 

 

AC

Rio Branco

7

4

-43,7

1,9

AL

Maceió

10

7

-30,5

1,3

AM

Manaus

13

11

-16,8

0,9

AP

Macapá

4

2

-50,9

0,8

BA

Salvador

19

14

-26,8

0,9

CE

Fortaleza

4

5

24,2

0,3

DF

-

17

25

45,2

1,6

ES

Vitória

4

1

-75,3

0,5

GO

Goiânia

4

4

-1,3

0,5

MA

São Luís

6

3

-50,3

0,5

MG

Belo Horizonte

16

17

5,8

1,3

MS

Campo Grande

16

2

-87,6

0,4

MT

Cuiabá

6

5

-17,4

1,6

PA

Belém

4

12

198,3

1,5

PB

João Pessoa

6

3

-50,5

0,7

PE

Recife

8

12

49,2

1,3

PI

Teresina

6

11

82,5

2,3

PR

Curitiba

8

8

-0,8

0,8

RJ

Rio de Janeiro

18

25

38,4

0,7

RN

Natal

2

5

148,2

1,1

RO

Porto Velho

5

3

-41,0

1,1

RR

Boa Vista

5

2

-61,4

0,9

RS

Porto Alegre

10

9

-10,3

1,1

SC

Florianópolis

4

4

-1,5

1,5

SE

Aracaju

5

...

1,4

SP

São Paulo

40

33

-18,0

0,5

TO

Palmas

7

...

4,3

Fontes:
Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Estimativas populacionais elaboradas pelo Ministério da Saúde/SVS/DASNT/CGIAE; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
(...) Informação não disponível. 
(-) Fenômeno inexistente.
(1) Taxas por 100 mil mulheres.
(2) Atualização das informações publicadas no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 15, 2021.


Dentre as informações sobre Mortes Violentas Intencionais - MVI, relativas aos anos de 2020 e 2021, segundo as Secretarias de Segurança Pública, merecem destaque as seguintes:

a) os totais de MVIs em todo o Brasil foram 50,4 e 47,5 mil, respectivamente, em 2020 e 2021. Registrou-se aumento apenas na região Norte, tendo sido assustador o aumento no Amazonas (de 1.121 para 1.670); dos sete Estados, apenas no Acre e em Tocantins, houve redução;

b) no Nordeste, os Estados em que houve aumento de MVIs em 2021 foram apenas: Bahia e Piauí;

c) no Centro-Oeste, ocorreu redução no número de MVIs no Distrito Federal e nos três Estados da região;

d)  também no Sudeste, onde, em 2021, ocorreram 25% das MVIs do País, registrou-se redução em relação a 2020 nos quatro Estados;


Os registros, como ocorreu com o caso dos feminicídios, anteriormente examinados, permitem observar as taxas de MVIs por 100 mil habitantes, podendo-se destacar o que segue resumidamente.

As taxas são apresentadas ano a ano para o período 2011 a 2021 e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, por Estados e Distrito Federal, constituindo um painel de muitas variações, dentre as quais se destaca neste exame:

a) o percentual de variação, para cada Unidade da Federação, entre o início e o final do período;

b) no caso do Brasil como um todo, encontrou-se uma redução de 9,3%; excetuando-se a região Norte, com aumento de 62,1% na taxa, as demais regiões apresentaram valores menores, no final do período em relação ao início, em percentuais que se situaram entre 4,0% (no Centro-Oeste) e 4,6% (no Nordeste) e 28,2% e 24,6%, no Sul e no Sudeste, respectivamente.

Esses dados sobre o desrespeito aos direitos individuais, sociais e trabalhistas, no enorme acervo de estatísticas, muitas ainda sujeitas a aperfeiçoamentos, juntamente com muitas a cujo levantamento e divulgação há que se dar início, revelam o volume de tarefas a serem desenvolvidas pela sociedade para reduzir profundamente, em grande parte de seus membros, uma propensão à ação violenta, sem qualquer consideração pelo direito à segurança, tão claramente estabelecido pelo sistema democrático, mesmo escassamente representativo.



Agradecimentos: o autor agradece a leitura atenta à primeira versão deste artigo feita pelos professores Maria Isabel Pedrosa e João Carvalho.


Recife, junho de 2023.

Ivo V. Pedrosa

https://ivopedrosa.academia.edu/


[1] https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/

[2] Logo que se reflete um pouco sobre o conjunto, percebe-se que apenas no caso do lazer não se vê a urgência característica dos demais.

[3] Os itens mencionados a seguir entre as aspas são do próprio autor e não de órgãos de comunicação.

[4]PREÂMBULO: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, ...”

Por atuar na área de Economia Política e não do Direito, o autor fez uma busca pela palavra “segurança” no “Texto Compilado” da Constituição Federal: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

[5] Artigo 144 da Constituição Federal.

[6] Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, alterado por inúmeras leis a partir de então. Ver: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.

[7] Fórum Brasileiro de Segurança Pública - “O Anuário Brasileiro de Segurança Pública compila e analisa dados de registros policiais sobre criminalidade, informações sobre o sistema prisional e gastos com segurança pública, entre outros recortes introduzidos a edição.” Ver: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/prevencao-da-violencia/

[8] Constituição Federal, artigo 144, § 10: “A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)

I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)

II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)”.

[9] Ver inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição Federal.

[10] Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


[11] Ver inciso “XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.