02/07/2022

 

PRESENTE E FUTURO – 2 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A HABITAÇÃO

Nesse esforço de colocar em discussão os 11 direitos sociais[1] previstos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, achei importante examinar, após a publicação do artigo em que abordei a alimentação[2], o direito à moradia.

Em se tratando de direitos sociais, num país de extrema desigualdade e carências no atendimento de necessidades básicas, torna-se difícil até mesmo ordenar esses direitos segundo prioridade. Examinando, porém, a história da humanidade, inclusive pensando no ser humano como um ser vivo, com a característica, portanto, de luta pela sobrevivência, coloquei em primeiro lugar a alimentação e, agora, parece-me dever ser o abrigo a próxima prioridade nesta abordagem.

Em artigos anteriores[3], foi mencionado que o direito ao trabalho constitui categoria especial porque, além do fato de proporcionar a realização do ser humano, como fator de crescimento – por meio da aquisição de conhecimentos, aprendizado de cooperação, de participação na construção da cultura e outras conquistas – o direito ao trabalho, na sociedade mercantil, permite o direito à renda e, com ela, a aquisição de bens e serviços capazes de proporcionar acesso à ampliação de outros direitos, quando não alcançados por políticas públicas, como a saúde[4], a educação, a informação, o lazer etc. Na sociedade capitalista, a necessidade de venda da força de trabalho, sem a obtenção de um equivalente ao valor total produzido em bens e serviços – e, portanto, sendo gerada grande disparidade na distribuição do resultado do trabalho social – esse direito leva à luta por eliminação dessa desigualdade. Por isso, ele será objeto de exame mais adiante nesta série.

A habitação[5], ou moradia, vivenda ou, ainda, em termos mais simples, o abrigo, leva a que a propriedade ou posse da habitação, ao longo do desenvolvimento dos indivíduos, deva se tornar preocupação essencial. Trata-se de garantir a proteção do sol, da chuva, da queda de árvores e de outros fenômenos da natureza, bem como dos animais daninhos, e para uso de um local confortável capaz de proporcionar o descanso e o sono reparador, permitindo a conservação da saúde. Acresçam-se a essas funções elementares e fundamentais da habitação, tantas outras, ao proporcionar o ambiente para: a convivência de familiares e amigos, com trocas de amabilidades e experiências; a privacidade; o estudo individual, complementar ao da escola, e o trabalho em casa (seja simplesmente o doméstico, seja o realizado no “home office”) etc. Esse meio de proteção constitui-se em objeto de preocupação fundamental dos adultos integrantes da família. A sabedoria popular criou um provérbio simples e adequado a essa necessidade: “quem casa quer casa”; mas também dela precisa quem opta pela vida de solteiro.

A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018) do IBGE permite conhecer a seguinte síntese sobre a questão da habitação no Brasil:

a) a população estimada era 207 milhões de habitantes, dos quais 176 milhões estavam nas cidades e 31 milhões na zona rural, resultando numa taxa de urbanização de 85%. Esta proporção da população nas cidades bem como a velocidade da sua aglomeração nesses espaços explica grande parte das elevadas, concentradas e crescentes demandas de infraestrutura e correspondentes serviços públicos como os de transporte, saúde, educação e outros;

b) quanto à ocupação do domicílio, 152 milhões residiam em domicílio próprio, 35 milhões em alugados e 20 milhões em domicílios cedidos;

c) do ponto de vista de arranjos familiares, 10 milhões eram do tipo unifamiliar; 29 milhões do tipo casal sem filhos; 121 milhões, casal com filhos; 11 milhões eram do tipo "arranjo formado por mulher sem cônjuge e com filho(s) até 14 anos", dos quais, 4 milhões formados por mulheres brancas e filhos e 7 milhões por mulheres negras ou pardas e filhos; outros tipos de arranjos familiares reuniam os demais 36 milhões de brasileiros.

No exame da questão habitacional[6], tornou-se muito relevante a pesquisa do IBGE, iniciada em 2012 e denominada “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua” que investiga temas relacionados com as condições da residência:

Visa acompanhar as flutuações trimestrais e a evolução, no curto, médio e longo prazos, da força de trabalho, e outras informações necessárias para o estudo do desenvolvimento socioeconômico do País. Para atender a tais objetivos, a pesquisa foi planejada para produzir indicadores trimestrais sobre a força de trabalho e indicadores anuais sobre temas suplementares permanentes (como trabalho e outras formas de trabalho, cuidados de pessoas e afazeres domésticos, tecnologia da informação e da comunicação etc.), investigados em um trimestre específico ou aplicados em uma parte da amostra a cada trimestre e acumulados para gerar resultados anuais, sendo produzidos, também, com periodicidade variável, indicadores sobre outros temas suplementares. Tem como unidade de investigação o domicílio.[7]

A PNAD Contínua referente a 2018 revela, para efeito de se ter uma síntese da questão para o Brasil como um todo, as seguintes informações:

            - população total: 207,9 milhões de habitantes

                - cor ou raça branca (%): 43,1

                - cor ou raça preta (%): 9,3

                - cor ou raça parda (%): 46,5

            - população por faixa de idade (em milhões)[8]:

                - 0 a 4 anos: 13,1        - 5 a 13 anos: 25,5      - 14 a 17 anos: 11,8       - 18 a 19 anos: 6,7    

                - 20 a 24 anos: 16,0    - 25 a 29 anos: 15,0    - 30 a 39 anos: 33,0       - 40 a 49 anos: 28,7    

                - 50 a 59 anos: 25,0    - 60 a 64 anos: 10,1  - 65 anos ou mais: 21,9

            - condição no domicílio:

                - responsável: 71,0 (34,2%)

                - cônjuge ou companheiro(a): 44,1 (21,2%)

                - filho ou enteado(a): 70,7 (34,0%)

                - outro: 22,0 (10,6%)

Os dados extraídos da mesma PNAD Contínua, relativos às condições de infraestrutura das habitações, podem ser, antes de expostos, sintetizados com os seguintes destaques:

a)      100 mil são “casas de cômodos, cortiços ou cabeças de porco[9]”; este tipo de “domicílio” não é aceitável como habitação para um ser humano.

b)      Quanto à fonte de abastecimento d’água, dos 71 milhões de domicílios, 5,3 milhões têm acesso a água por meios não seguros do ponto de vista de contaminação por patógenos. Exemplos: nas grandes aglomerações urbanas, sobretudo das verdadeiras megalópoles, o que significam “poço raso, freático, cacimba, fonte ou nascente”? Certamente locais contaminados.

c)      Quanto à informação sobre canalização e banheiro, pode-se perceber que a água não entra canalizada em 1,7 milhão de domicílios.

d)      No que se refere ao esgotamento sanitário, pense-se nos 21,1 milhões de domicílios com “fossa não ligada à rede” e nos 2,2 milhões com “outra forma de esgotamento”. Neste caso, uma leitura pode ser “porta da casa”!

e)      um último destaque refere-se ao destino dos resíduos sólidos. O IBGE refere-se a lixo, embora esta palavra não induza à distinção entre vários tipos de resíduos, como os recicláveis, os passíveis de reuso, os tóxicos etc. A expressão “resíduos sólidos” (ou “líquidos”, para efluentes) contribui para se obter uma destinação correta, diferentemente da palavra “lixo”, secularmente visto como uma mistura de todos os resíduos, que hoje não podem ser tratados de forma homogênea.
Em 6,3 milhões de domicílios a destinação não garante condições adequadas para a saúde, pois ou os resíduos são queimados (com as mais diversas consequências negativas para a sociedade, desde a poluição ambiental até incêndios, danos a animais e plantas etc.) ou têm destino não especificado.

Detalhemos, então, os dados escolhidos na base do IBGE e a partir dos quais foram elaborados os destaques acima:

            -tipo de domicílio (em milhões):

                        - total: 71,0                 - apartamento: 9,8

                        - casa: 61,1                 - casa de cômodos, cortiço ou cabeça de porco: 0,1

            - fonte de abastecimento d’água: 71,0

                        - rede geral de distribuição: 61,0       - poço profundo ou artesiano: 4,9

                        - poço raso, freático ou cacimba: 2,3             - fonte ou nascente: 1,5

                        - outra forma de abastecimento: 1,5

            - canalização: 69,26

- banheiro: 69,33

- esgotamento sanitário:

            - rede geral ou fossa ligada à rede: 47,1

            - fossa não ligada à rede: 21,1

            - outra forma de esgotamento: 2,2

- destino do lixo:

- coletado diretamente: 58,9              - coletado em caçamba: 5,8  

- queimado na propriedade: 5,3         - outro destino: 1,0.               

Examinando-se a PNAD Contínua (2021), quanto ao Programa Bolsa Família, transferência de política pública capaz de contribuir em alguma proporção para a melhoria da condição habitacional, constata-se que 18,6 milhões de pessoas moravam em domicílio em que algum morador recebeu rendimento desse Programa.

Cabe acrescentar a caracterização desses moradores em termos de educação formal:

            - 5,3% não tinham instrução,

            - 48,6% tinham ensino fundamental incompleto ou equivalente,

- 10,5% tinham ensino fundamental completo ou equivalente,

            - 11,3% tinham ensino médio incompleto ou equivalente,

            - 21,6% tinham ensino médio completo ou equivalente,

            - 1,4% tinham ensino superior incompleto ou equivalente,

            - 1,3% tinham ensino superior completo.

Outras informações significativas para esse exame da questão habitacional – quanto ao direito à habitação – no Brasil, podem ser encontradas na publicação do IBGE “Aglomerados subnormais”[10], designação técnica, com esforços de conceituação precisa, para “favelas” e outras denominações para áreas urbanas com habitações precárias ou arremedos delas.

Foram identificados, no Censo de 2010 (o de 2022 terá início em agosto deste ano), 6.329 aglomerados subnormais, 11,4 milhões de pessoas (6% da população) e 3,2 milhões de domicílios particulares ocupados (5,6%).

Matéria do Jornal da USP publicou foto (abaixo) da favela Paraisópolis em São Paulo que evidencia o desafio a ser enfrentado com relação às condições de moradia que, conforme o IBGE, alcançava, no Censo de 2010, 6% da população ou 11,4 milhões de habitantes.

Os dados acima apresentados representam uma síntese da grande parcela da população brasileira que enfrenta a precariedade das condições da habitação, o que remete para esforços inadiáveis de formulação de políticas e destinação de recursos para apoiar as famílias que vivem nessas condições na obtenção de moradia digna. Essa dignidade deve incluir a infraestrutura de necessidades correlatas, como saúde, educação, transporte etc. Os tipos de apoio às famílias, no caso da habitação propriamente dita, variarão de acordo com o extrato de renda por membro da família.



Favela Paraisópolis, Morumbi. Foto: Jorge Maruta/Jornal da USP[11].

 

Parece claro, por outro lado, que a questão da moradia está intrinsecamente relacionada com os determinantes do êxodo rural e os processos de migrações em geral em busca de postos de trabalho ou da mudança para outros que exijam mais qualificações e remunerem melhor. Isto significa que, em última análise, o “planejamento urbano” torna-se inevitável, mas o modo de produção capitalista – fundamentado na determinação individual das decisões de investimento e suas consequências em termos de localização dos meios de produção – não é compatível com o planejamento da produção social e o consequente assentamento ordenado das populações. Um conceito básico e simples de mercado (capitalista, em razão do modo de produção hegemônico dos últimos séculos), apresentado por José Augusto Drummond[12], lembra as dificuldades de estabelecer planejamentos urbanos e habitacionais na nossa sociedade: mercado é um “conjunto de ações e iniciativas, individuais, espontâneas, imprevisíveis, descoordenadas entre si” (p. 123).

 

Ivo V. Pedrosa, Recife, 28/06/2022.



[1] O conjunto dos direitos mencionados no artigo 6º da Constituição Federal contempla: Educação, Saúde, Alimentação, Trabalho, Lazer, Moradia, Transporte, Segurança, Previdência Social, Proteção à Maternidade e à Infância e Assistência aos Desamparados.

[4] Mencionem-se, a título de exemplos, os planos de “saúde complementar” de empresas privadas de saúde, uma parte da mercantilização dos cuidados com a saúde.

[5] Habitação é palavra oriunda do latim habitat, que significa morada. Como palavra latina passou a ser utilizada em português pela Ecologia para significar “conjunto de circunstâncias físicas e geográficas que oferece condições favoráveis à vida e ao desenvolvimento de determinada espécie animal ou vegetal” e “tipo de ambiente caracterizado por um conjunto de condições bióticas e abióticas integradas”; e também pela Antropogeografia para significar “conjunto de condições de organização e povoamento pelo homem do meio em que vive” (Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0).
Registre-se que o primeiro componente da palavra Ecologia é oriundo da palavra grega oikos, que significa casa e também compõe a palavra Economia, originalmente, o estudo das “normas – nomos, em grego – da casa”.

[8] O conhecimento da distribuição da população por essas faixas de idade torna-se importante para efeito de formulação de determinadas políticas públicas. Assim, por exemplo, as faixas de 5 a 24 anos importam para as políticas educacionais dos vários níveis de ensino e aquelas de 60 e mais, para políticas públicas de interesse dos cidadãos de maior idade.

[9] O CORTIÇO CABEÇA DE PORCO
A região portuária abrigou o maior cortiço da história do Rio. Se hoje costumamos nos referir a “cabeça de porco” como sinônimo de sobrados multifamiliares insalubres, o nascimento deste termo remete a 1880. Próximo à estação ferroviária Central do Brasil, o Cabeça de Porco original constituía-se como um verdadeiro bairro, com sobrados subdivididos em diversos quartos. O nome era uma referência ao adorno do portal de entrada: a escultura da cabeça de um suíno.
O Cabeça de Porco ganhou fama pela persistência. Durante o Império, não foram poucas as tentativas de desativá-lo. Em 1891, por exemplo, um contrato da municipalidade com o engenheiro Carlos Sampaio previa a construção de um túnel e a desapropriação de imóveis. Mas no meio do caminho lá estava ele: o Cabeça de Porco.
Dois anos depois, entretanto, o prefeito Barata Ribeiro determinou a sua eliminação. As obras do túnel João Ricardo puderam então começar - mas levariam longos 30 anos. Diziam que nele chegaram a morar, ao mesmo tempo, 4 mil pessoas.
https://www.facebook.com/descortinandorio/

[10] IBGE - http://lagf.org/2013/pdf/Camila%20Santos.pdf

Aglomerados subnormais “é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”.

[12] “Conceitos Básicos para a Análise de Situações de Conflito em torno de Recursos Naturais”, in: Roberto Bartholo Jr. et alii – A Difícil Sustentabilidade; política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.

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