PRESENTE E
FUTURO – 2 – DIREITOS SOCIAIS DE VOLTA: A HABITAÇÃO
Nesse
esforço de colocar em discussão os 11 direitos sociais[1] previstos no artigo 6º da
Constituição Federal de 1988, achei importante examinar, após a publicação do
artigo em que abordei a alimentação[2], o direito à moradia.
Em se
tratando de direitos sociais, num país de extrema desigualdade e carências no
atendimento de necessidades básicas, torna-se difícil até mesmo ordenar esses
direitos segundo prioridade. Examinando, porém, a história da humanidade,
inclusive pensando no ser humano como um ser vivo, com a característica,
portanto, de luta pela sobrevivência, coloquei em primeiro lugar a alimentação
e, agora, parece-me dever ser o abrigo a próxima prioridade nesta abordagem.
Em artigos
anteriores[3], foi mencionado que o
direito ao trabalho constitui categoria especial porque, além do fato de
proporcionar a realização do ser humano, como fator de crescimento – por meio
da aquisição de conhecimentos, aprendizado de cooperação, de participação na
construção da cultura e outras conquistas – o direito ao trabalho, na sociedade
mercantil, permite o direito à renda e, com ela, a aquisição de bens e serviços
capazes de proporcionar acesso à ampliação de outros direitos, quando não
alcançados por políticas públicas, como a saúde[4], a educação, a informação,
o lazer etc. Na sociedade capitalista, a necessidade de venda da força de
trabalho, sem a obtenção de um equivalente ao valor total produzido em bens e
serviços – e, portanto, sendo gerada grande disparidade na distribuição do
resultado do trabalho social – esse direito leva à luta por eliminação dessa
desigualdade. Por isso, ele será objeto de exame mais adiante nesta série.
A habitação[5],
ou moradia, vivenda ou, ainda, em termos mais simples, o abrigo, leva a que
a propriedade ou posse da habitação, ao longo do desenvolvimento dos indivíduos,
deva se tornar preocupação essencial. Trata-se de garantir a proteção do sol, da
chuva, da queda de árvores e de outros fenômenos da natureza, bem como dos
animais daninhos, e para uso de um local confortável capaz de proporcionar o
descanso e o sono reparador, permitindo a conservação da saúde. Acresçam-se a
essas funções elementares e fundamentais da habitação, tantas outras, ao
proporcionar o ambiente para: a convivência de familiares e amigos, com trocas
de amabilidades e experiências; a privacidade; o estudo individual,
complementar ao da escola, e o trabalho em casa (seja simplesmente o doméstico,
seja o realizado no “home office”) etc. Esse meio de proteção constitui-se em
objeto de preocupação fundamental dos adultos integrantes da família. A
sabedoria popular criou um provérbio simples e adequado a essa necessidade:
“quem casa quer casa”; mas também dela precisa quem opta pela vida de solteiro.
A última
Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018) do IBGE permite conhecer a
seguinte síntese sobre a questão da habitação no Brasil:
a) a
população estimada era 207 milhões de habitantes, dos quais 176 milhões estavam
nas cidades e 31 milhões na zona rural, resultando numa taxa de urbanização de
85%. Esta proporção da população nas cidades bem como a velocidade da sua
aglomeração nesses espaços explica grande parte das elevadas, concentradas e
crescentes demandas de infraestrutura e correspondentes serviços públicos como
os de transporte, saúde, educação e outros;
b) quanto à
ocupação do domicílio, 152 milhões residiam em domicílio próprio, 35 milhões em
alugados e 20 milhões em domicílios cedidos;
c) do ponto
de vista de arranjos familiares, 10 milhões eram do tipo unifamiliar; 29
milhões do tipo casal sem filhos; 121 milhões, casal com filhos; 11 milhões
eram do tipo "arranjo formado por mulher sem cônjuge e com filho(s) até 14
anos", dos quais, 4 milhões formados por mulheres brancas e filhos e 7
milhões por mulheres negras ou pardas e filhos; outros tipos de arranjos
familiares reuniam os demais 36 milhões de brasileiros.
No exame da
questão habitacional[6], tornou-se muito relevante
a pesquisa do IBGE, iniciada em 2012 e denominada “Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua” que investiga temas
relacionados com as condições da residência:
Visa acompanhar as flutuações
trimestrais e a evolução, no curto, médio e longo prazos, da força de trabalho,
e outras informações necessárias para o estudo do desenvolvimento socioeconômico
do País. Para atender a tais objetivos, a pesquisa foi planejada para produzir
indicadores trimestrais sobre a força de trabalho e indicadores anuais sobre
temas suplementares permanentes (como trabalho e outras formas de trabalho,
cuidados de pessoas e afazeres domésticos, tecnologia da informação e da
comunicação etc.), investigados em um trimestre específico ou aplicados em uma
parte da amostra a cada trimestre e acumulados para gerar resultados anuais,
sendo produzidos, também, com periodicidade variável, indicadores sobre outros
temas suplementares. Tem como unidade de investigação o domicílio.[7]
A PNAD
Contínua referente a 2018 revela, para efeito de se ter uma síntese da questão
para o Brasil como um todo, as seguintes informações:
- população total: 207,9 milhões
de habitantes
- cor ou raça branca
(%): 43,1
- cor ou raça preta (%):
9,3
- cor ou raça parda (%):
46,5
- população por faixa de idade
(em milhões)[8]:
- 0 a 4 anos: 13,1 - 5 a 13 anos: 25,5 - 14 a 17 anos: 11,8 - 18 a 19 anos: 6,7
- 20 a 24 anos: 16,0 - 25 a 29 anos: 15,0 - 30 a 39 anos: 33,0 - 40 a 49 anos: 28,7
- 50 a 59 anos: 25,0 - 60 a 64 anos: 10,1 - 65 anos ou mais: 21,9
- condição no domicílio:
- responsável: 71,0
(34,2%)
- cônjuge ou
companheiro(a): 44,1 (21,2%)
- filho ou enteado(a):
70,7 (34,0%)
- outro: 22,0 (10,6%)
Os dados
extraídos da mesma PNAD Contínua, relativos às condições de infraestrutura das
habitações, podem ser, antes de expostos, sintetizados com os seguintes
destaques:
a)
100
mil são “casas de cômodos, cortiços ou cabeças de porco[9]”; este tipo de “domicílio”
não é aceitável como habitação para um ser humano.
b)
Quanto
à fonte de abastecimento d’água, dos 71 milhões de domicílios, 5,3 milhões têm
acesso a água por meios não seguros do ponto de vista de contaminação por
patógenos. Exemplos: nas grandes aglomerações urbanas, sobretudo das
verdadeiras megalópoles, o que significam “poço raso, freático, cacimba, fonte
ou nascente”? Certamente locais contaminados.
c)
Quanto
à informação sobre canalização e banheiro, pode-se perceber que a água não
entra canalizada em 1,7 milhão de domicílios.
d)
No
que se refere ao esgotamento sanitário, pense-se nos 21,1 milhões de domicílios
com “fossa não ligada à rede” e nos 2,2 milhões com “outra forma de
esgotamento”. Neste caso, uma leitura pode ser “porta da casa”!
e)
um
último destaque refere-se ao destino dos resíduos sólidos. O IBGE refere-se a
lixo, embora esta palavra não induza à distinção entre vários tipos de
resíduos, como os recicláveis, os passíveis de reuso, os tóxicos etc. A
expressão “resíduos sólidos” (ou “líquidos”, para efluentes) contribui para se
obter uma destinação correta, diferentemente da palavra “lixo”, secularmente
visto como uma mistura de todos os resíduos, que hoje não podem ser tratados de
forma homogênea.
Em 6,3 milhões de domicílios a destinação não garante condições adequadas para
a saúde, pois ou os resíduos são queimados (com as mais diversas consequências
negativas para a sociedade, desde a poluição ambiental até incêndios, danos a
animais e plantas etc.) ou têm destino não especificado.
Detalhemos,
então, os dados escolhidos na base do IBGE e a partir dos quais foram
elaborados os destaques acima:
-tipo de domicílio (em milhões):
- total: 71,0 - apartamento: 9,8
- casa: 61,1 - casa de cômodos, cortiço ou
cabeça de porco: 0,1
- fonte de abastecimento d’água:
71,0
- rede geral de distribuição:
61,0 - poço profundo ou artesiano: 4,9
- poço raso, freático ou
cacimba: 2,3 - fonte ou
nascente: 1,5
- outra forma de
abastecimento: 1,5
- canalização: 69,26
- banheiro: 69,33
- esgotamento sanitário:
- rede geral
ou fossa ligada à rede: 47,1
- fossa não
ligada à rede: 21,1
- outra
forma de esgotamento: 2,2
- destino do lixo:
- coletado diretamente: 58,9 - coletado em caçamba: 5,8
- queimado na propriedade: 5,3 - outro destino: 1,0.
Examinando-se
a PNAD Contínua (2021), quanto ao Programa Bolsa Família, transferência de
política pública capaz de contribuir em alguma proporção para a melhoria da
condição habitacional, constata-se que 18,6 milhões de pessoas moravam em
domicílio em que algum morador recebeu rendimento desse Programa.
Cabe
acrescentar a caracterização desses moradores em termos de educação formal:
- 5,3% não tinham instrução,
- 48,6% tinham ensino fundamental
incompleto ou equivalente,
- 10,5% tinham ensino fundamental completo ou equivalente,
- 11,3% tinham ensino médio
incompleto ou equivalente,
- 21,6% tinham ensino médio completo
ou equivalente,
- 1,4% tinham ensino superior
incompleto ou equivalente,
- 1,3% tinham ensino superior
completo.
Outras
informações significativas para esse exame da questão habitacional – quanto ao
direito à habitação – no Brasil, podem ser encontradas na publicação do IBGE
“Aglomerados subnormais”[10], designação técnica, com
esforços de conceituação precisa, para “favelas” e outras denominações para
áreas urbanas com habitações precárias ou arremedos delas.
Foram
identificados, no Censo de 2010 (o de 2022 terá início em agosto deste ano),
6.329 aglomerados subnormais, 11,4 milhões de pessoas (6% da população) e 3,2
milhões de domicílios particulares ocupados (5,6%).
Matéria do
Jornal da USP publicou foto (abaixo) da favela Paraisópolis em São Paulo que evidencia
o desafio a ser enfrentado com relação às condições de moradia que, conforme o
IBGE, alcançava, no Censo de 2010, 6% da população ou 11,4 milhões de
habitantes.
Os dados
acima apresentados representam uma síntese da grande parcela da população
brasileira que enfrenta a precariedade das condições da habitação, o que remete
para esforços inadiáveis de formulação de políticas e destinação de recursos
para apoiar as famílias que vivem nessas condições na obtenção de moradia
digna. Essa dignidade deve incluir a infraestrutura de necessidades correlatas,
como saúde, educação, transporte etc. Os tipos de apoio às famílias, no caso da
habitação propriamente dita, variarão de acordo com o extrato de renda por
membro da família.
Favela Paraisópolis, Morumbi. Foto: Jorge Maruta/Jornal da USP[11].
Parece claro,
por outro lado, que a questão da moradia está intrinsecamente relacionada com
os determinantes do êxodo rural e os processos de migrações em geral em busca
de postos de trabalho ou da mudança para outros que exijam mais qualificações e
remunerem melhor. Isto significa que, em última análise, o “planejamento
urbano” torna-se inevitável, mas o modo de produção capitalista – fundamentado
na determinação individual das decisões de investimento e suas consequências em
termos de localização dos meios de produção – não é compatível com o
planejamento da produção social e o consequente assentamento ordenado das
populações. Um conceito básico e simples de mercado (capitalista, em razão do
modo de produção hegemônico dos últimos séculos), apresentado por José Augusto
Drummond[12],
lembra as dificuldades de estabelecer planejamentos urbanos e habitacionais na
nossa sociedade: mercado é um “conjunto de ações e iniciativas, individuais,
espontâneas, imprevisíveis, descoordenadas entre si” (p. 123).
Ivo V.
Pedrosa, Recife, 28/06/2022.
[1] O conjunto dos direitos mencionados no artigo 6º da Constituição Federal contempla: Educação, Saúde, Alimentação, Trabalho, Lazer, Moradia, Transporte, Segurança, Previdência Social, Proteção à Maternidade e à Infância e Assistência aos Desamparados.
[2] Ver https://brasilcomdemocracia.blogspot.com/2022/06/presentee-futuro-3-direitos-sociais-de.html.
[3] Ver os artigos 1 e 2 desta série: https://www.blogger.com/blog/post/edit/885351445742996830/8978984020773139269
https://www.blogger.com/blog/post/edit/885351445742996830/7363487154302174420
[4] Mencionem-se, a título de exemplos, os planos de
“saúde complementar” de empresas privadas de saúde, uma parte da
mercantilização dos cuidados com a saúde.
[5]
Habitação é palavra oriunda do latim habitat, que significa
morada. Como palavra latina passou a ser utilizada em português pela Ecologia
para significar “conjunto de circunstâncias físicas e
geográficas que oferece condições favoráveis à vida e ao desenvolvimento de
determinada espécie animal ou vegetal” e “tipo de ambiente caracterizado por um
conjunto de condições bióticas e abióticas integradas”; e também pela
Antropogeografia para significar “conjunto de condições de organização e
povoamento pelo homem do meio em que vive” (Dicionário Eletrônico Houaiss da
língua portuguesa 1.0).
Registre-se que o primeiro componente da palavra Ecologia é oriundo da palavra
grega oikos, que significa casa e também compõe a palavra Economia,
originalmente, o estudo das “normas – nomos, em grego – da casa”.
[6]
Ver as diversas publicações do IBGE relacionadas com a questão habitacional:
https://brasilemsintese.ibge.gov.br/habitacao.html
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101794
[7]
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e
[8]
O conhecimento da distribuição da população por essas faixas de idade torna-se
importante para efeito de formulação de determinadas políticas públicas. Assim,
por exemplo, as faixas de 5 a 24 anos importam para as políticas educacionais
dos vários níveis de ensino e aquelas de 60 e mais, para políticas públicas de
interesse dos cidadãos de maior idade.
[9]
O CORTIÇO CABEÇA
DE PORCO
A região portuária abrigou o maior cortiço da
história do Rio. Se hoje costumamos nos referir a “cabeça de porco” como
sinônimo de sobrados multifamiliares insalubres, o nascimento deste termo
remete a 1880. Próximo à estação ferroviária Central do Brasil, o Cabeça de
Porco original constituía-se como um verdadeiro bairro, com sobrados
subdivididos em diversos quartos. O nome era uma referência ao adorno do portal
de entrada: a escultura da cabeça de um suíno.
O Cabeça de Porco ganhou fama pela persistência.
Durante o Império, não foram poucas as tentativas de desativá-lo. Em 1891, por
exemplo, um contrato da municipalidade com o engenheiro Carlos Sampaio previa a
construção de um túnel e a desapropriação de imóveis. Mas no meio do caminho lá
estava ele: o Cabeça de Porco.
Dois anos depois, entretanto, o prefeito Barata
Ribeiro determinou a sua eliminação. As obras do túnel João Ricardo puderam
então começar - mas levariam longos 30 anos. Diziam que nele chegaram a morar,
ao mesmo tempo, 4 mil pessoas. https://www.facebook.com/descortinandorio/
[10] IBGE - http://lagf.org/2013/pdf/Camila%20Santos.pdf
Aglomerados subnormais “é
um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos,
casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou
tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou
particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”.
[11]
https://imagens.usp.br/editorias/arquitetura-categorias/favelas-e-comunidades/attachment/morumbi_-favela-paraisopolis-209-07-jm197/.
[12]
“Conceitos Básicos para a Análise de Situações de Conflito em torno de Recursos
Naturais”, in: Roberto Bartholo Jr. et alii – A Difícil Sustentabilidade; política
energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
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